26.2.13

robustez

ama-me apoiada com as mãos
na parede da casa de banho
enquanto o meu corpo e o teu
corpo
árvores antigas entrelaçadas
e abaixo disso as pernas
e as calças
junto aos sapatos
ao chão,
sem o cuidado requerido
à sua eventual higiene.

títulos

queria ver as girafas no jardim zoológico,
quando acordou. disse que tinha sonhado com
o meu irmão, que num sonho amara o
meu irmão e que era estranho acordar ao
meu lado por isso o melhor era irmos ao
jardim zoológico ver as girafas, dar uma moeda
aos elefantes para um deles se mover em
direcção ao sino e o tocar, que o fizesse
toar por todos os outros paquidermes mortos
sob o sol, nos cemitérios de elefantes.
nas escadas do prédio caminhávamos para
um cemitério gravado na nossa memória.

25.2.13

faz uma bola no meu

sete
horas
de um dia
parado a ver
uma torradeira
afundar-se num
lago
até desistir

até concluir
"a cidade é lixo
está cheia de lixo"
e as pessoas
cidades
ambulantes
também.

um último suspiro cansado e com pus nas costas

para a Sara

a culpa é-nos tão fria nos dentes mas
não é minha se antes te deram coisas
tão vagas tão incapazes
meu amor
se foste um animal que me fugiu por
entre os dedos por entre a culpa nos
dentes e se corres agora pelos arbustos
incendiando tudo à passagem ao contacto
com os teus cabelos com as tuas costas
com as tuas coxas violentas de mulher
adulta. à distância vejo sem analisar
com um cigarro a nascer-me dos beiços
dos lábios no meu país de loucura onde
sei este futuro como uma coisa só minha
e lamento a imbecilidade de que te quiseste
rodear com vista a poderes sobreviver.

oitenta

homens tristes em cuja língua em cuja glote
se engole em seco, gaivotas em cujas penas
uma semiótica para outro país, "feathers",
"sorrows", polissemias variadas em cujas
mãos um sorriso nunca aberto uma ferida
nunca provocada. homens em cujos dedos
pedaços de grafite a desenhar no chão sóis
luas estrelas simples, um traço único, cinco
ou seis pontas, a lua uma bola uma esfera
uma semiótica. homens tristes pendurados
em cabides na rua nos autocarros a chegar
a casa para jantar para comer para conversar
às vezes com ninguém porque isto, enfim,
ter de viver sozinho, ter de aprender,
ter de falar, de abrir a boca, mover os lábios,
limpar os olhos de todo o algodão de todas
as espinhas de todos os ossos e ver claramente
"aqui", dizer, mexer, fazer, ter de, ter de ser
"assim". homens desconjuntados de cujos
pés se soltam uvas, olhos de pessoas mortas,
ao caminharem descalços no cimento. dias
minerais, ónix, sem pássaros sem anfíbios sem
insectos só com homens e mulheres atirados
lá para dentro, a jantarem a falarem a comerem
a pensarem mas a não verem porque remover
o algodão as espinhas os ossos de cima dos
olhos, essas coisas todas um estorvo à vida
ao pragmatismo da vida - as mentiras as ilusões
o amor porque o que importa são os sacos
de plástico a deixar vergões nos dedos
nos autocarros nos comboios, de pé, a
segurar a vida toda muito prática nos sacos
do hipermercado. a glote permite engolir às
vezes em seco e isso não existe mas o amor
também não existe e não deixamos de ir
morrendo lentamente por causa disso.

20.2.13

raquel

cheguei aqui cansada, a dizer as mesmas coisas
exactamente as mesmas coisas
a conversar com este homem que me afaga o cabelo
(quem me dera que este homem me afagasse o cabelo)
que me constrói um mosaico com jornais e revistas.
seguro-lhe as mãos e converso, converto,
acredito no que digo - minto. acredito no que
minto, estou cansada, cheguei aqui cansada de
dançar, de comer, de foder de vez em quando
em locais públicos, de vez em quando não, em
locais belos, íntimos, fechados do mundo, cápsulas.
estou uma vírgula um saco de papel a rebentar de
respiração, converso com este homem
(afaga-me o cabelo)
minto a este homem e arrependo-me no momento
exacto em que o faço mas depois de ditas
anos e anos e anos
séculos
como parar as coisas que se soltam? vê-las na
sua vida própria (estás louca), vê-las, observá-las
avançando pelo musgo do ar. cheguei aqui um
pequeno corpo, um pequeno planeta, com varizes
de frio nos dedos esguios, com um saco de papel
para onde respirar caso hiperventile, esta noite não
me apetece levar ninguém para casa mas ao menos
alguém que me afagasse o cabelo, que me dissesse
"amo-te"
que me mentisse
amo-
-te tanto. e me segurasse as pernas no frio.

19.2.13

riscaram-me o carro às cinco da manhã

julgo que um húmus qualquer, uma flor esquecida
no tampo de uma mesa, junto de canecas e de
pratos de barro. os dedos e as unhas e os cigarros
o tabaco as mãos os olhos os dentes os nervos
na escuridão, num canto, sobre o tampo da mesa.
a meteorologia não se enganou hoje, os homens
da meteorologia sem conhecimento exacto
enganam-se muitas vezes, mas hoje não, porque
a precipitação, os aguaceiros, o vento, embora
aqui dentro, com o cheiro a vinho, os enchidos
pendurados na parede, o homem atrás do balcão,
silencioso, a limpar copos com um trapo sujo,
a mesa de madeira ferida, complicada, com um
jarro de vidro e uma flor lá dentro, julgo que o
húmus disto, no fundo. julgo que noutro local
pessoas que conheço em bicicletas sobre pontes,
nas estradas. mas aqui o escuro, o cheiro a vinho,
os enchidos pendurados nas paredes, sobras de
porcos, suínos, nenhuma fiscalização, ninguém
passa facturas, ninguém quer saber, o homem
está silencioso atrás do balcão e a sua única meta
é limpar copos com um trapo, contar as garrafas
de vinho, de aguardente, ligar a rádio numa estação
ao calhas onde de hora a hora se ouçam as notícias
e a meteorologia por entre o ruído branco da estática.
julgo que uma antena no corpo por onde entra a poesia
como um vidro partido, comer a poesia como um
vidro partido, com pão e enchidos assados em álcool
à minha frente, julgo que um húmus, uma flor tão
absurda neste canto, junto à parede, coberta de pó
e de insectos pequenos, coberta de linguagem de
todos os dias, num jarro de vidro, perto dos
copos e dos pratos de barro, mergulhada em tabaco
e dedos e olhos e vinho e nervos, tão triste,
porque a poesia vem dos mecanismos magnéticos
do fígado e dos pulmões e da faringe, nunca
dos nervos.

18.2.13

caranguejo

sob a saia um segredo sujo
de mês a mês um animal
ferido e bruto a defender-se
a fechar-se dentro de um silvado

nestas alturas em que é preferível
não saber.

11.2.13

registo de temperaturas

os homens lavam o chão das casas no buraco
da viuvez. esperam. esfregam. as mulheres
raras que morreram e que não souberam que
ao morrer, ao partir, estavam também a matar.

final: a besta

dou-te uma flor destruída para nada
à cabeça tenho uma coroa e pó e juncos
com que construir um barco
mas insuficientes como os rins que
falham
o fígado
os pulmões
dou-te um silêncio de linha
nylon
nos lábios nas gengivas
uma flor uma raíz de gengibre
um coração parado
um umbigo.

vulgaridades

mijar no escuro
contra o vento
mijar as pernas
o nojo de mijar
no escuro
contra o vento
as pernas
mijar a poesia
no escuro quando
se escreve isto
uma amálgama
de dores e de nojo
de luto e mijo
no escuro
um atentado
grotesco contra a
poesia e a roupa.

10.2.13

uma simplicidade

às crianças tristes mascaradas no carnaval

(pudera proteger-vos, oferecer-vos
um tijolo ou um resto de cimento
com que pudessem construir muros
e nunca sofressem

seria dessa forma.)

fecho

a Daniel Faria

faltando um ano para morreres
- o teu ofício -
escrevias explicações sobre as coisas
e pensavas e desejavas Deus
no que dizias, no que nos deixaste.
e agora já passaram anos sobre
a tua morte e ainda me ilumino
sob as tuas palavras para Deus,
pedindo-te desculpa por, sempre
que te leio, serem em mim tão
capazes para as mulheres que amo.
as palavras ao teu Deus são as
palavras ao meu.

9.2.13

animal

as tuas pernas
dobradas
os joelhos
contra a minha
garganta
apertados
para que
a minha
língua
súbita
púrpura
roxa
entre os
lábios e os
olhos cerrados
a perder
a cor.

8.2.13

dança de salão

não sei guardar-me
fugir
de tudo o que dói
das saudades
e da tua boca
longe
eventualmente
para sempre.

jacqueline

"neste poema juvenil disse: esqueci-me dos
valores da ciência, por ti, das palavras que
se deviam maiusculizar de todas as vezes
em que se dizem, se pensam. num poema
juvenil disse: não vou voltar a casa para
o jantar, abro uma janela e vejo a sua
guilhotina aniquilar pássaros e insectos."

no intervalo de lavar a louça ouço tudo
e não posso responder nada. tenho um
mapa para as pernas doentes. a boca fala
limão, como o detergente da louça, sem
amoníaco, para que não nos intoxiquemos de
respirar. não volto para jantar, a janela
juvenil deste poema é uma guilhotina no
meu pescoço de pássaro, de insecto.

fita magnética

capa: variação sobre fotografia da autora.
um saco roto no fundo numa esquina
só um furo pequeno de onde por onde
a água
e o chão.
a fotografia da autora enquanto jovem
uma variação
a velhice recusada para a posteridade
uma luva rota por onde de onde
a água
e os dedos
as feridas
guardar tudo numa variação sobre fotografia
da autora
e a autora enquanto jovem porque a gramática.

5.2.13

Homem de Vitrúvio

é altura de o meu útero fazer um ensaio
fotográfico num local apropriado: uma
estrada de campo, com silvas e cardos
e homens e mulheres que falem de toalhas
de mesa; que atravessem pontes ao
entardecer com molhos de vides às costas.
o meu útero está ferido de toalhas de mesa,
de amor desperdiçado em teorias e em
esforços, estoicismos fora de prazo,
fora de tempo. está triste de estar
metido neste século e inventa outros tempos
aqui dentro. tenho um útero seco com
mãos selvagens que arranham e arrastam
o corpo pelo chão, numa estrada de campo,
com silvas e cardos e crianças sujas e grotescas,
belas, expressionistas, cada uma com o
seu útero aprisionado num bico de pássaro
doente. os miúdos desenham uma arquitectura
no chão e comem abelhas vivas, para que
os úteros não morram. o  meu útero, uma
urtiga com saudades imensas de tudo aquilo
que dentro de si poderia ter sido, se
as mãos, os olhos, os lábios feridos
tivessem deixado.
ofereci por um cálice de brandy
que não está a
nem vai
servir para nada
um euro e setenta e cinco cêntimos.
dir-me-iam
"era dinheiro mais bem gasto
noutra coisa."
talvez. mas é o que sobra
para manter a alma oleada e a
funcionar na medida do possível.

4.2.13

pó é zis

amo tanto essa mala vermelha que o braço
arrasta, entrelaçada, pelo corredor fora.
podia deitar-me ao lado dessa mala vermelha,
esta noite, e sussurrar-lhe musgo e líquenes
avermelhados. entender o movimento de rotação
dos corpos celestes, mas calar a boca, que
"corpos celestes" é uma expressão feia. dizer,
comovido, entre soluços, "o mundo precisa é de
mais malas vermelhas."

procura as coisas

um braço,
é tudo o
que te
peço.

um braço
que me
afogue
o pescoço
e me
obrigue
a morrer.

1.2.13

mensagem

não digas
"é como regar flores de plástico"
fora do
contexto em que
o disseste pela
primeira vez. guardo
num país que é nosso
esse contexto e retiro-te
portanto
o direito de fechares
longe de ti o meu amor
dizendo que agora
é como regar flores
de plástico.

tarantella

gasto o que resta do corpo em acções
aparentemente inúteis; beber um copo
de vinho tinto, tomar um comprimido,
acender um cigarro, vestir umas meias,
lavar os dentes. em toda a memória
nenhuma destas coisas serve para nada
e no entanto perpetuo-as como se
servissem, sou um autómato moderno,
orgânico, com nervos em vez de fibra
óptica, com um coração em vez de um
êmbolo, com feridas em vez de fios
descarnados. tenho o amor dentro
da boca, uma besta, o amor, na
boca ou num jarro de flores vazio,
apenas água, um resto de mar, no fundo,
um resto de mar no fundo do corpo
e pouco resta do corpo, embora as
mesmas acções inúteis se mantenham.
gasto o resto do tempo, acendo um
cigarro, inspiro, expiro, os dedos
mudando de posição, rodando o
cilindro incandescente na ponta como
se fosse um sexo de papel, vejo o
fumo, gasto o cigarro, acabo o cigarro,
deito fora um cigarro. tomo um comprimido,
visto as meias, bebo um copo de vinho
tinto e sinto o frio e passo as mãos pelo
cabelo; danço o que posso dentro de
um corpo que seguramente não é meu,
cada fibra disto diz pertencer a um
outro, noutro local, mais capaz e certo.