21.4.13

espirro

foi chão que já deu uvas
outrora
mas neste momento
dá uma cal muito branca
dá dentes e azia
e em nenhuma
loja
nos vendem um coração
mais capaz
ainda por estrear
com imensas vinhas
que dêem uvas
tintas e vinho
e palavras.

ectoplasma

no Barreiro podia-se fumar em quase todos
os cafés mas quando passaste lá uma noite
comigo ficámos só em frente ao rio a abrir
e a fechar as janelas do carro por causa da
condensação e jogámos jogos deveras
ridículos mas não queríamos saber

à noite nas canas de pesca umas luzes
verdes no escuro

fumámos no carro não foram precisos
bares nem cafés só os nossos dedos
relativamente ágeis na verdade do
tabaco - agora não temos quem nos
leve para lado nenhum e nenhuma margem
onde os homens pesquem à noite

não guardas nada daquilo que te dei
mas trago silenciosamente tudo o que
tocámos tudo o que queimámos durante
o verão.

15.4.13

quem parte e reparte

ninguém que cante, com uma voz válida,
atrás dos homens que ouvem.
ninguém que plante uma flor de nervos
de música estragada.
as melhores mãos eram aquelas cujos
dedos, alcalinos, magoavam, empurravam
contra o vidro.
ninguém que escreva a dor de quem
leia, nenhuma aula de simpatia no
meio do cheiro a mijo de gato.
ninguém onde a noite, nenhum
arquitecto que proponha uma forma
de construir casas próprias para o
corpo humano.
apenas o tabaco ininterrupto e os
pulmões convulsos onde ninguém mexe.
só pássaros, atrás dos homens que ouvem.

queratina

podias ter-me matado - as mãos lenta mas
peremptoriamente envolvendo o
pescoço. devias ter-me matado
quando fodíamos. podia ter morrido,
quatro lágrimas brancas de leite à
saída da piça, meu amor. morrer quando
podia. quando devia.

10.4.13

carneiro

sou má rês
má coisa
res, rei

sou mau
mauzinho
mesquinho
corrosivo
orgulhoso

mas sei
lamber
tão bem.

8.4.13

sandra

os teus poemas eram tão tristes e
os melhores poemas são os poemas tristes e
confesso que tantos anos depois
estou a ler os teus poemas antigos
e tenho vontade de chorar
de tanta beleza de tanta angústia
de ter sido tanto para tanta gente
que não soube vê-lo e a ti que o
viste
só dei a intensidade de ervas secas
e és a única pessoa a quem realmente
me dói ter contribuido para que os
poemas antigos
sejam tão tristes.

3.4.13

noventa

preciso de uma mulher a sério,
uma mulher para quem olhe e
saiba que é uma mulher a sério,
que queira um homem a sério,
um homem para quem olhe e
saiba que é um homem a sério.

moagem

os passos para longe
onde cavalos de osso
corram pelo púrpura
aveludado das cidades
destruídas e abandonadas

sem homens sem mulheres
sem gatos
para longe onde os poemas
nunca digam dentro de si
a palavra pele a palavra
deserto a palavra areia

só velhos porque os
velhos são antigos
homens antigas mulheres
que nunca chegam a
cumprir o seu desígnio
de homens de mulheres

e flores sob os cascos
e por motivos estéticos
dentro do sítio onde
tinham estado
os olhos.