14.6.13

fibromialgia

"o suor são micro-transacções?" olha: despiste o
soutien e não era esta a altura certa. seguras um
sabonete, fazes perguntas. a nossa pele tem o
odor desagrável das sardinhas assadas. "faz
hoje um ano". recapitulemos: não tenho nenhuma
irmã que me espere sob a ombreira da porta, na
casa desabitada onde as vespas fazem ninhos
nos caixilhos podres das janelas; nem sequer uma
figura com as mãos e os pés estigmatizados,
sentada à cabeceira da mesa, de pernas cruzadas,
enquanto reacende a teimosia de um cigarro
com um fósforo húmido. o suor são micro-
-transacções? eu sei lá o que seja o suor, sei
lá que metáfora pretendes usar, quando dizes
isso. afugentamos as pulgas do colchão com
a pressa de foder. faz hoje um ano. devíamos
era sentar-nos na borda do chão e chorar por
todos os familiares que nos estão a morrer de
cancro e de porcarias interiores. mas domina-
-nos a pressa obsessiva de foder e fumar, a pressa
de não saber, não possuir o requisito mínimo de
paciência para saber responder o que porra seja
o suor. suamos quando fodemos, foder é uma
micro-transacção que, de vez em quando, é muito
luminosa. mas outras vezes não.

13.6.13

um beijo electrónico entre tesla e edison

mandíbula que aperte o casquilho na manhã, que
atire de modo violento o tremor da paixão
contra a incandescência dos napperons, esses adereços
antigos e obsoletos cuja única função é a de
provocarem sorrisos condescendentes nas bocas das
gerações mais novas. um osso que fossilize
e guarde a ciência e a filosofia num segredo
que escorra pelo tempo como cera; e que solidifique
- a cera e o osso -
de uma maneira triste, a morrer sem sangue nem
feridas no fundo da corrente alternada.
mandíbula poética que nas mãos segure o casquilho
e o arremesse ao que se come, àquilo com
que se guarnece o estômago e as tripas. e
um prédio que se construa mas que, assim que
terminado, surja envelhecido e deixado ao abandono,
morada para pessoas à beira da morte, ossos,
instalações eléctricas que na noite desistam, respirem
convulsivamente na humidade e interrompam a
sintaxe da casa com o seu choro. janelas onde
mandíbulas rasgando ao longo dos vidros, com
tantas saudades dos campos de trigo com o
céu em cima repleto de corvos e, num
espaço, ao meio, de garças, em conjunto a
desenhar um homem cansado de todo o
chão petrificado. bocas que beijem bocas de
crianças sentadas ao colo, "velho porco", dedos
que como enguias de um mito poético perdido
procurem a carne viva sob a roupa interior.

umas meias rotas

- não tenhas vergonha de escrever poesia nos cafés, com toda
a gente a olhar como se alguma coisa estivesse errada
contigo. a poesia é isto, assim, e faz falta aos meus
ouvidos, sinto falta de te ouvir entre a luz e as sombras
do sol esgueirando-se pelos estores mal fechados (estragados)
deste quarto, quando acordas antes de mim.

a poesia é para miúdos, não é um trabalho
para velhos, a menos que se seja um autor reconhecido.

azulejo

na casa que a minha madrinha aluga
a estudantes da escola de artes e
design (&) fiquei a fumar cigarros
que tirei dos cinzeiros, deixados
pelas raparigas que ali moravam,
depois de ir à manifestação anti-tourada.
o meu corpo era só aquilo, à varanda,
no bairro azul, por cima da pizzaria,
no fim de te teres ido embora.
a televisão só tinha quatro canais
e em nenhum estava a dar nada
de interesse. telenovelas, sobretudo.
faz quase um ano e tinhas-te ido
embora no autocarro e ligavas-me,
nessa altura ouvia ainda a tua voz
ao telefone, o meu corpo com a tua
voz não era só aquilo, por cima da
pizzaria, com uma almofada dentro
de um saco de plástico, à espera
que me fossem buscar. podia ter
amado uma das mulheres que
estavam na manifestação. podia
ter-te esquecido logo nessa noite
e parece-nos tão certo, agora, que
isso teria sido o mais sensato
a fazer.

doméstica #1

quando regresso a casa
às duas da manhã
no degredo interior
de ter de viver
na província
quando a culpa disso
(que animal fugidio
a culpa) é minha
sei que posso
pegar na minha gata
e colocá-la em cima
da mesa com uma
única fatia de fiambre
e apagar a luz da cozinha

imaginar no quarto as
pupilas da minha gata
no escuro
enormes como faróis
de um barco de dentes.

5.6.13

quadrado perfeito

respira o que te parecer serem vinte anos
ininterruptamente
20vinte20
sem parar vinte anos
de respiração

(she was pregnant again and she was going
to name the baby 'Alguidar', after her
grandfather)

deixa que os mortos enterrem
os seus mortos e repara apenas
no arco
tão concreto
quando se dispara
um míssil.

turno da tarde

tenho a vergonha de um neófito pela primeira
vez diante de uma mulher nua. tenho o medo
da poesia pós-moderna a apertar-me o esófago.
tenho uma vertigem de luzes na parede do
quarto e lâmpadas acesas no tecto. como uma
criança pela primeira vez defronte de uma mulher
nua sentada na borda da cama. olho para as
mãos e não sei o que fazer com elas.
tenho um cigarro apagado nos lábios. dependurado.
uma piça.
tenho uma piça e com o medo de quem
vê uma mulher nua pela primeira vez
não sei o que fazer com ela e com as
mãos. tenho a poesia pós-moderna a estorvar
no esófago e no sangue que me endurece
a piça.

escritório

não vou ver a tua exposição de fotografia
porque não acredito em fotografia
não acredito em psicologia
não acredito no Freud.

creio no vinho tinto e n'O Capote
de Gogol.

croft em cálice morno

à uma da tarde começam os comboios para
são martinho do porto onde mora um amigo
ainda em 1967. em junho de mil novecentos e
sessenta e sete o calor da uma da tarde (treze
horas) incomoda as senhoras que esperam de
pé pelo comboio e se vão abanando com
jornais e chapéus e leques e uma pergunta-me
"não tem calor?" e outra afirma que está tanto
calor. o meu amigo tem os óculos na ponta do
nariz em são martinho do porto sentado à janela
de sua casa a ler Hemingway. a ler um livro do
Hemingway que ele escreveu quando tinha só
bigode ainda não a barba completa. em 1967
em são martinho do porto o Hemingway já tinha
morrido há seis anos. o meu amigo não tinha barba
e fumava muito. nessa altura falava-se pouco do
cancro dos pulmões e mesmo que se falasse
muito do cancro dos pulmões o meu amigo
não quereria saber porque ao menos quando fumava
não chorava ao menos quando fumava não
lhe fugia a cabeça para coisas e sentimentos
tristes. porque a cabeça das pessoas fugia muito
para coisas tristes à uma da tarde em são martinho
do porto em mil novecentos e sessenta e sete.
o Hemingway matou-se em julho de 1961. eu e o
meu amigo em são martinho do porto às três e
quinze da tarde ainda estamos vivos e a comer
pastéis de nata enquanto bebemos café em frente
à praia. quanto ao futuro. quanto ao futuro. que
se foda. hoje não se fala de cancro dos pulmões.

4.6.13

whisky primavera

esta coisa fica ligada mas eu
vou dormir. devia dormir. em 1967
a ser uma máquina que dorme.