30.11.13

cianeto

estava de bruços no chão quando os outros homens caçavam aranhas
no escuro e sobretudo no vão de escadas das casas em ruínas. ouvia
as mulheres que cantavam, chorava, agarrado ao apêndice que nunca
mais rebentava de lixo e de ossos minúsculos. ouviu cair um rim sobre
um banco, ouviu os cães arfando com a fome, soube a loucura dos
animais em torno dos tecidos moles do corpo humano; a sofreguidão
com que devoraram o rim sobre o banco. o rim caíra de uma árvore
como se fora um pássaro que não aprende a voar, caiu em linha recta
como uma maçã atingindo a cabeça dos físicos de que a história nos
fala. mas as maçãs não são comida para cães nem para lobos nem para
mulheres. no chão, de bruços, com a face esquerda encostada ao
solo, chorando, agarrando o apêndice, pedindo, rezando ao apêndice
para que explodisse e as mulheres se reunissem numa alcateia à sua
volta e lhe comessem as vísceras, que o plantassem numa cova pouco
profunda e lhe deixassem os dedos dos pés de fora, para que daí
nascessem árvores, acácias, salgueiros, coisas capazes de sombra
e de vergastas que deixem marcas e doam nas costelas e no lombo.

27.11.13

ostra

se me levasses às aulas de ballet como dantes
se me ignorasses enquanto o professor te elogiava
as mamas e eu ficava sentado numa das cadeiras
velhas ao fundo sem nada para escrever no bloco
de notas e sem nada para beber durante a espera.

lemos Pynchon e Vian quando tínhamos treze anos
foi inconsequente como termo-nos amado no
momento em que nos amámos abre aspas:
"ao menos amámo-nos" fecha aspas
mas às tantas nem isso. nunca me levaste às
aulas de ballet nem às aulas de violino mas
fodemos nas casas de banho da escola e é
certo que isso teve uma poesia qualquer

quanto mais não seja porque lemos Pynchon
e Vian aos treze anos e depois disso é tão
fácil ver quão luminoso e artístico e romântico
é foder numa casa de banho pública.

de todas as pessoas que se alimentaram do meu
coração foste a única que o filtrou como uma peça
de fruta e dele bebeu álcool e água e mel e no fim
lixívia.

5.11.13

tacho

à noite por vezes
o que há
para comer
é um resto
de caldeirada
de peixe
batatas com
escamas e
espinhas

e uns fios
de cebola e
tomate.

4.11.13

mercromina

também leste as revistas cor de rosa, sem nada para
fazer, na esplanada. e amaste os homens nas revistas,
as frases em espanhol que começavam com os pontos
de exclamação invertidos. podia amar-te se viesses
numa revista cor de rosa, se falassem do teu
dia-a-dia, do teu pijama, das tuas mãos, se
viessem fotografias tuas nas revistas.
leste revistas, aborrecida nas esplanadas, à chuva,
com o rosto encostado na mão direita, a querer
amar tanto as fotografias, as páginas.