19.2.14

para a nova carne

as pessoas na rua evitam-na, o carrinho de bebé vazio e
velho, com as rodas desalinhadas e perras, a levá-la
numa viagem estranha, falando para o nada dentro das
mantas e do lixo, com um garfo cravado no pescoço e
a aspergir sangue doente para cima das pedras e dos
animais mas não das pessoas - as pessoas são inteligentes,
evitam, fogem desses baptismos horríveis, lavam
as mãos com desinfectante e
no fim de cagar poupam as florestas e enxaguam
o cu no bidé com aguinha morna e sabonete.

ode a um relógio despertador

i) analógico

tirar um curso de jardinagem em três meses - coisas
práticas. é relevante aprender a distinguir um cedro
de um cipreste, uma violeta de um amor-perfeito.
dominar o ofício de manusear tesouras com
minúcia, estar inteirado das especificidades sazonais,
não confundir uma orquídea com uma vulva,
saber que as orquídeas não se comem, não
são para pôr na boca.

ii) digital

coçar a virilha, sim, mas não em vão, sempre
com cuidado, atentando, tacteando - o tacto apurado -
os poros, notando, sabendo onde e como e o
quê. não arrancar as carraças só assim; não é
desse modo grotesco que se faz: as carraças são
esfinges, grifos, há uma mitologia que lhes é
adjacente. "ao removeres uma carraça, unta tua pele
com éter ou álcool, só então se torna possível tirá-la em
completa segurança. ao removeres uma carraça,
aproxima de seu corpo redondo de hemoglobina uma
fonte fosforescente, também ela pulsante, que a
queime onde seja o posterior de si, e libertar-se-à
por si só, pois teme de morte o fogo contra o
abdómen." quando coçares a virilha e te deparares com
com uma carraça, sabe que são aracnídeos carnívoros
e não se comem, não são próprias para pôr na boca.

dividimos a conta?

"recordas-te do narciso, aquele que caiu num poço e
morreu afogado, a água a saber a mentol durante
seis meses, dos rebuçados que levava nas aligibeiras e
que se dissolveram na água? do sabão na água
mentolada, o corpo a desaparecer e por milagres
químicos, na água, a tornar-se num produto de
ph mais ácido?"
recordo-me dos pianos no funeral, do caixão
simbólico, uma caixa de madeira escura, onde
cabia um par de sapatos, com uma fotografia
em cima -- o narciso era violentamente um bigode
de azeviche (nem sei o que seja azeviche).
recordo-me de ouvir rock dos anos 60, na rádio,
nessa noite, e do tabaco mentolado me saber a
sabonete rente às amígdalas.

18.2.14

Αικατερίνη

os dicionários não estão convencidos da origem etimológica do
teu nome. os dicionários são autoridades, têm doutas figuras a
segurar-lhes a estrutura -- são uma estrutura, um andaime. existem
umas explicações, só que os dicionários exigem provas concretas,
photos or it didn't happen.

mas, olha: faço isto. atento e preocupo-me a acarinho. noto
que não entendo muito sobre o tempo, já só tenho
dois pares de sapatos, figurativa e concretamente, e
no tempo e no espaço peço-lhes uma utilidade
muito prática: cuidem-me dos pés, nunca
aprendi a caminhar de modo ligeiro sobre o solo.
os sapatos são só objectos, são um substantivo, há
uma substância muito peculiar do que é ser um
sapato, mas não está capaz de mais do que isso --
é  um sapato. o estupor do dicionário tem
a certeza absoluta e incontestável de que um sapato
é um sapato, não há nada que lhe possa pedir, eles
resguardam-me os pés e cuidam deles para que se não
firam nos acidentes do chão. o dicionário não sabe de ti,
é inútil no que diz respeito a isso. diz-me que há umas
santas da igreja a partilhar o teu nome e portanto vem
de um adjectivo grego que se traduz como "puro". em
arménio, outra hipótese sugerida, uma palavra possível
pode ser traduzida como "cume/zénite", adicionando
um elemento grego macarrónico poderia ser qualquer
coisa como "ela é o zénite". repara: estava a falar de
sapatos mas não deixei de falar de ti. os meus sapatos
velhos -- dois pares, só -- custam-me na dimensão
reduzida da concretude a que o dicionário os relega.
se lhes pedisse e o cumprissem, levar-me-iam para
onde estás, de modo a que te dissesse que não te
quero pura nem te quero o cume de nada. chegas-me
no que és, ainda que a autoridade dos dicionários
não o saiba. levassem-me os dois pares de
sapatos velhos que tenho, teria um pomar de lábios
incandescentes pelas tuas pernas acima, uma
redoma de silêncio púrpura para guardar quando
a tua voz existe no tabaco. os sapatos têm onde dormir
mas ao resto da substância de mim faltas-me
como um apêndice de mãos de sangue de electricidade
de saliva. sou um animal sem memória e preciso da
autoridade, da certeza absoluta dos dicionários, essas
estruturas, mas no vácuo tenho-te guardada, nem
pura nem zénite de coisa nenhuma, só lábios e braços
e pele e quente. choro a febre e o reumático dos
sapatos -- são só isso, sapatos. não me podem
guardar de nada. não me guardam. sou um animal
sem memória mas ao contrário dos sapatos carrego-te
na minha substância. posso guardar-te e estou a fazê-lo.

10.2.14

já é dia dez

deixas o teu poeta preferido morrer à fome porque o que
a alma come não alimenta o estômago ou os intestinos. e
falas aos teus amigos do teu poeta, é fácil imaginar só
a sua vida à distância, a percepção, os arquétipos,
guardar o poeta neles todos, calcular os seus passos,
os escarros de muco à noite e de manhã, as pernas
magras e a barriga de cerveja. mas ao poeta interessa-lhe
comer, interessa-lhe ter leite fresco, laranjas num saco,
das doces. interessa-lhe que a solidão passe, que a luz
não falte quando a tempestade abala os postes eléctricos.

7.2.14

newton e as teorias

i)

não nos morreu o gato, nunca se iniciou como
nosso. morreu-nos o piano velho, matou-o a
humidade, na sala. matou-o devagar, com paciência.
não se queixou, não se lamentou. morreu, só,
tornou-se mais humidade que madeira. a humidade
destruiu-o como um cancro meteorológico. ao
gato foi um problema nos rins, mas não
chorámos por ele, fomos como pianos assassinados
pela humidade, deixámos de saber como.

ii)

a nova marca de azeite na frigideira com dois
ovos e os olhos aquáticos do cão pequeno e
ridículo perto do fogão. seria fácil cegá-lo com
o azeite a ferver. queimar-lhe a humidade.

concertina

abro os olhos (dois milímetros, cinco) para ver
coisas, mulheres, para ver que a minha poesia não
sabe nada, não tem noção de como falar, do
que dizer. a poesia é uma outra coisa, escrever
só porque se escreve não adianta de muito, abrir
os olhos para chorar, para pedir bolos na pastelaria,
pastéis de nata, palmiers, ficar sentado ao pé
da livraria com uma esperança ínfima de não
ser indiferente à empregada bonita que vende
livros (vendeu-me um Kafka). a existência cansa,
por isso é melhor que se escreva, que se chore
de um modo mais metafórico, com um café a
arrefecer numa chávena; é preferível encher a vida
de mentiras e de sistemas propícios à sobrevivência:
fazer planos de um curso prático de cozinha,
aprender electrotecnia por correspondência. fingir que
se teve coragem de se dizer à empregada da
livraria que o nosso par de mãos a cheirar a
tabaco está disponível para ela, que os trocos de
que dispomos, ainda, dão para lhe pagar um
café. inventar que faltámos à catequese, às quartas,
que perseguimos répteis nas margens dos rios, que
nunca roubámos dinheiro para comprar casacos.
abro dois milímetros (de dois a cinco) de olhos, de
pálpebras, para olhar para isto, para notar o movimento
dos dedos à procura de palavras sem importância nenhuma,
juntando agramaticalmente tudo e lendo alto a
amigas, depois, na esperança de que chegue para foder.