31.3.14

necrose

fabricar um sabonete com que lavar as partes pudendas,
montá-lo em casa, no bidet, que palavrinha imbecil.
mastigar glicerina, há certas comodidades domésticas que
não são para ir para a boca - o sabonete é para as
mãos, para os pés, para as partes pudendas, não convém
que cheirem ou que saibam mal (por vezes as partes
pudendas são para estar na boca, numa intimidade esquisita
que infunde medo, um chá de medo, uma infusão na
intimidade).
ferve-se a glicerina, vê-se nos filmes franceses como
construir sabão em casa, panelas grotescas, o estanho e o
alumínio todos sujos de uma gordura, por fora, nos
fogões a lenha, o trabalho todo, o suplício todo da
gordura purificada ao lume só para lavar o rosto,
tê-lo perfumado e pronto para a eventualidade remota
de oferecerem beijos ao jeito de intimidade
com ou sem
o sexo na boca.

máquina de lavar roupa #4

a beleza é um homem a falar francês ao telefone
no início de tarde, não entendo nada do que diz,
preocupa-se, move-se, fala, leva as mãos à cara,
eu só sei que cauchemar é pesadelo mas ele
não fala de pesadelos, fala de coisas que angustiam o
interlocutor a dizer e a ouvir francês, do outro lado.

30.3.14

relâmpagos: tangente

escrevi um caranguejo na areia no meio das tábuas
podres e das redes de pesca em decomposição e ele
brilhava no escuro da alma e caminhava de lado
na destruição, triste e com medo e eu quis
protegê-lo mas tinha as mãos cheias de buracos
e como ele fugia da civilização desapareceu na
água como quem se baptiza.

retroactivos

ele tem uma espingarda carregada nas mãos e corre
pelas ruas, esqueceu-se de comprar peixe para grelhar,
e chora, com todos os êmbolos que o deviam manter
em equilíbrio a funcionar mal, tem uma nuvem
sobre a cabeça, é roxa, ele pensa numa nuvem
roxa e vai levando isso pelas ruas, tem os pulmões
a respirar azoto, hélio, cianeto, ele está a dormir
correndo, ele tem uma mulher morta numa divisão
da casa, assassinou-a, às vezes é melhor assim,
pensa, correndo com uma nuvem roxa cada vez maior,
ele tem medo, tem fome, tem o sabugo nas unhas
doendo como um gémeo siamês que lhe tenham roubado,
ele tem sangue no nariz e nos ouvidos e magoa-o
o ruído, o lamento ruidoso dos passos arrastados dos
velhos no parque, pessoas que perderam tudo ou que
se calhar nunca tiveram nada a perder desde o início.

20.3.14

1899

não havendo macieira seja então um constantino
à porta da tasca onde sei que os homens se
congregam nessa comunhão de vinho porque
tantos filtros de cigarros na calçada - tive cuidado
com a aliteração, menos agora.

tenho a alma nas mãos como sempre a despachar
um copo de constantino mais que meio porque
não quis troco de um euro
e ninguém a quem a dar está-se a consumir
sem propósito com o álcool nas tardes de
fim de inverno
e as beatas dos outros no chão.

19.3.14

aniversário

meu pai tão velho, idoso, já não a mesma muralha dos meus
seis anos, ainda capaz na doença no entanto de ser meu pai.

13.3.14

tabuleiro: proxeneta

onde foi um quartel dos bombeiros e depois um armazém
é agora uma casa de putas e à porta uma mulher
de cabelo asqueroso, oxigenado, com as raízes a
sobressair no fulcro do amarelo-branco, um alcatrão
no percurso da cabeça, uma verdade de nojo na luz
falsa do resto, descasca uma maçã encarnada e olha
os pombos com a precaução de quem ganhou o
dinheiro para o fruto, ela tem a propriedade do
fruto, embora o debulhe com a navalha e dispense
a pele e os caroços - empecilhos alimentares que podem
ficar para os pássaros. tem as pernas abertas
porque vale mais que um homem e sabe-o, a um
nível básico sabe que vale mais que os homens,
pode escarrar e assoar-se no vidro da idade porque
os homens precisaram daquilo que tem e eles não,
por uns contos de réis. escurece onde foi o quartel
menos o branco-amarelo do cabelo e o pêro debulhado
e os pombos, que são putas aéreas sem se
preocuparem com o egipto ou com o japão ou com
as putas, roubando os cascabulhos, fugindo, as
pernas escancaradas da puta não lhes dizem nada,
são alheios a isso, despejando só as tripas no céu.

francophonie

les monstres

ela é um herói de banda desenhada dos anos
oitenta nos braços e nas pernas e sobretudo nas
mamas e no cu.

l'ordinateur

ela parte os dentes dos homens que a amam com um
garfo e bate-lhes nos testículos com uma colher mas
oferece-lhes as primícias da vulva e da boca também.

le cauchemar

ela beija primeiro com os olhos e só depois com a boca
e com a língua e com os dentes sôfrega de esmalte
a sonhar com mulheres nuas cuja alma se bebe nos beijos.

les chapeaux

ela lava ela enxagua entre as pernas tem ali um amor
tem ali uma música tem ali um exército de querubins
a chorar leite e mel e toca-se e fecha os olhos.

ana

na casa que não temos estás junto ao televisor e
convém dizer que as tuas omoplatas são um
terreno onde se podem plantar fios de pesca, onde
lavrar poemas pendurados de luzes (talvez
prefiras "luminárias", lanternas, complicações de côr?).
numa caixa de sapatos guardamos
a) três bichos-de-conta
b) duas marias-café
c) duas lagartixas
está tudo nas tuas omoplatas, no teu rosto calmo
oferecendo um sangue, perguntas e escuto ou
finjo (menstruação?). o meu caminho é uma
lâmina de possibilidades cerâmicas, é um silvado
que se apara a custo com unhas e dentes. na
casa fazes perguntas, as costas metaforicamente
nuas, nua és uma substância ideológica indescritível,
és um trabalho de roseiras e de silvas espessas
que dão amoras. planto fios de pesca nas tuas
costas para depois colher nylon, vendê-lo-emos
em armazéns devolutos, roxos de asfixia, montamos
eclipses solares, fazemos resumos de clássicos
literários e tu ris e pronto, és um violoncelo
em erupção na boca. és uma saliva de café e é
mesmo triste que esta casa não exista, que se
resuma a uma caixa de sapatos com sete bichos
dentro e uma cassete onde gravaste o tabaco e
uma folha de um legume, onde cantaste blues noutro
século, um que não podemos prender nos fios de pesca.

12.3.14

ruínas

por entre as traves de madeira,
no chão, um telefone velho,
desligado, silencioso, e ao
fundo a balança antiga, rente
à parede, sobre si os reflexos
opacos dos homens movendo
pesos numa barra graduada
de metal, pesando batatas.
nos destroços do tecto não
caminha ninguém, não há
ninguém. ninguém pode
funcionar como pronome
indefinido, concordemos,
não é um bom substantivo,
no entanto. ninguém não
tem substância, é um nome
que define uma respiração
num lugar vazio, uma forma
onde não há espaço onde
tactear um corpo. este
telefone não recebe nem
faz chamadas, é um altar
nos escombros, um sacrário
para que ninguém possa
dirigir orações a quem, de
direito.

11.3.14

quarto 116

a) van zeller, paciente #1

a psicologia prende-o ali, a psicologia, essa besta, esse
animal tão terno, sem dentes, as gengivas tentando
trincar, prensar o coração. a psicologia são
livros apontando, são dedos que dizem "eu ajudo",
e está ali na divisão, na matemática, com os
lápis-de-côr e uma melódica porque a música é
terapêutica, a arte aponta com os dedos mascarrados
de azul (mascarrado é preto, nota isso, ou uma
variação espectral dentro dessa). ele sorri, ele sabe,
ele viu e tocou no coração das coisas com a
língua, mordeu com os dentes, a psicologia é
um lustre decorativo cheio de pó.

b) rodriguez, paciente #2

no jardim chamam-me pelo apelido, sou um militar
da loucura, defendo-a, milito-a, sou seu militante, luto
por ela, os meus dentes estão podres, amoleceram
(podia dizer que roí sóis de verdade, sou louco,
dêem-me um desconto, m dava-me descontos,
deixava que a fodesse, que lhe apertasse as mamas
enormes, descontava-me o sexo, a língua)
dos medicamentos, do resto de tabaco que me dispensam
como se chegasse - rio-me, não chega, é óbvio que
não chega nunca -, dizem o meu nome, finjo que
não ouço, que não o reconheço, a psicologia aponta-me
e deixa-me ser uma mão que não toca a púbis.

4.3.14

na compra de 5 caixas ou mais

a minha existência é atestada pelas cartas do banco. essas vão ainda chegando
no correio, atrasadas, com prazos de dez dias que já só são três, mas vão
sabendo o caminho da minha casa, do meu corpo, trazem-me uma espécie
de literatura com números, percentagens, lucros, débitos, ameaças educadas
e propostas de penhora sobre o nada que tenho em meu nome. eu existo
pois o banco ainda vai sabendo que é aqui que estou. com as chaves da
porta completamente desnecessárias na presilha das calças, como aos onze
anos, a querer dormir sentado na cama como se o tempo me cobrisse e
me desse a calma e a intemporalidade de uma figura de pedra, inexistente
mas concreta, dentro do útero de tijolo e tinta da minha casa. não tenho
absolutamente nada a que o meu nome se associe, nada que o banco
me leve, o banco não quer saber cá de poesias, a poesia não me paga
as contas e eu também não, portanto as cartas do banco vêm com as
ameaças sempre muito civilizadas a seguir aos números e aos factos --
são importantes, os factos
--, ameaças de me levarem as coisas que não tenho, as coisas que
deveria ter, que todos têm. o banco não se rala com a poesia e nem
tem por que o fazer, a poesia não paga contas e eu também não,
a poesia não me paga arroz nem queijo nem a luz nem o gás nem o
tabaco (falta-me tanto o tabaco); vou bebendo água da torneira e sabe
a musgo e a pedras, vem do poço sob a casa, sabe a caracóis e a lesmas,
a centopeias e a bichos-de-conta que na escuridão debaixo da casa
se alimentam e crescem e morrem dentro da água. a poesia não me
paga garrafas de água, mas antes de puxar o autoclismo a água
da torneira é tão amarela quanto a das garrafas.

uma náusea de vidro

quando me voltar para trás e olhar para aquilo que, enfim,
fica para trás (coisas horríveis, angústia, arrependimento,
culpa), tornar-me-ei numa estátua de sal como a esposa
de Lot, o meu esposo e as minhas filhas a seguir em frente
numa tapeçaria e num baixo-relevo, eu com uma touca,
parada, eterna, para sempre atenta à destruição de
sodoma de gomorra
tão triste, tão incomodada com o facto de desaparecerem
assim da história do mundo, e ter de as contemplar
onde estiveram fundadas, ainda que já nada, delas,
ali reste. saber que é por minha culpa que arderam
no enxofre da fúria divina, não poder sequer
chorá-las, ser só um pilar de sal, estático, perene,
o meu esposo e as minhas filhas tão longe, não
vale a pena chorar pessoas assim, fazemos o luto
mais tarde, ela agora é uma estátua de sal no deserto,
quem a mandou voltar-se para trás e olhar para aquilo
que, enfim, fica para trás? é coisa de gente fraca, não
se pode perder tempo com culpas, é um desperdício.
em gomorra os olhos nas sombras chorando enquanto
o fogo lambendo os corpos desfigurados, sou uma
estátua de sal e não choro, não posso, mas seria
bom poder fazê-lo ocasionalmente.