8.1.15

dentes

abre devagar a boca como se te
interessasse beijar-me, como se
acreditasses que é possível que
nos beijemos apesar de tantos
quilómetros, de tanto ar com coisas
pelo meio. quando te lembrares
de mim envia-me uma árvore,
dá-lhe um nome e envia-ma pelo
correio, com aviso de recepção,
enche-a de palavras e de gestos
ternos. pendura-me uma centopeia
na orelha quando falares, muitas
vezes lembro-me de ti de um modo
esquisito, como se o amor tivesse
acabado, muitas vezes somos
um par de animais demasiado
humanos para nos ralarmos com
qualquer coisa mais do que só
a fricção geométrica dos corpos, por
vezes bebemos demais e fingimos
de forma insuficiente que isso
chega. as minhas mãos não
chegam, não atravessam quilómetros,
não rasgam o silêncio quando a tua
boca ri muito alto longe daqui.
desenhei-te um cão numa folha
quadriculada, deve chegar um dia destes.

7.1.15

Andróide

viveria num sítio urbanizado mas não
em excesso e operaria uma editora de
poesia (em minúscula) e iria aos cafés e
às tascas porque a vida, ao fim e ao
cabo, é
ir a cafés e a tascas e a boticas e a
mini-mercados e a restaurantes e
a casas de pasto. rodear-me-ia de velhos
e de coisas antigas, ouviria ópera no
barbeiro quando, de seis em seis meses,
fosse sendo altura de cortar o cabelo.
"não mexa na barba, um editor de
poesia deve ter barba." o barbeiro
concordaria, "todos os homens deveriam
ter barba", e baptizar-me-ia com
pó-de-talco, o meu crânio um
rabo assado de bebé, mas noutra
extremidade do corpo; sacudiria
os cabelos e as palavras do mesmo
modo que as mulheres sacudiam o
cascabulho dos pêros do seu colo
para o chão e,  de seguida, para dentro das
bocas dos animais.
habitar um lado de vida mais perto do
que importa, preferencialmente com dinheiro
bastante para tabaco e café.

2.1.15

elefante marinho

com as unhas cortadas que deixei pelo
chão e no lixo ao longo dos anos
vamos construir um navio uma nau
e morrer desidratados no meio do
oceano atlântico os corpos secos ao
sol no convés comida para alba-
trozes e gaivotas os olhos vazios
sonhando com papagaios-do-mar
e baleias-de-bossa cantando para
adormecer os seus recém-nascidos.