20.10.15

pá(t)ria

o meu país é uma geração de casas
a cheirar a aranhas, a cheirar a veneno.
o meu país são bêbados a pedir cigarros, putos
romenos a pedir esmola para não
levarem porrada dos pais. o meu
país são pessoas a falar alto nos cafés
sobre motores e mulheres-coisas,
o meu país são trocos nos bolsos
para copos de tinto rasca, são
carros parados nos passeios à
frente das seguradoras, são
velhos a apanhar sol como se fossem
cães, são
botins de vindimar deixados
à entrada das casas. o meu país é estar-se
deprimido porque nos deixaram sozinhos mas
não se poder porque o mais importante
é a televisão e a economia e as contas,
a aritmética completamente deslocada
num lugar onde se deviam dormir sestas e beber bagaço
à noite, um lugar de estranhos abraçados
uns aos outros nas adegas, nos salões
de baile arruinados das casas senhoriais
provincianas. o meu país é um pão
com chouriço a arder num forno de pedra,
o meu país são mulheres que se afastam sobre o mar,
o meu país é um país de esperas,
um país que anela freudiano por uma
salvação escatológica saindo da neblina.
o meu país são bichos cheios de pus e matemática e vozes.
o meu país é uma metáfora, é um
silogismo, é um poema cada década mais
decadente. o meu país é uma dor de ouvidos.

18.10.15

impromptu

quando te trouxerem a comida numa salva de prata
não te esqueças de a devolver num prazo de, pelo
menos, três semanas (no máximo, três semanas e
meia), fica parado a observar os camiões e os carros
a levar materiais e pessoas para o outro lado do
mundo, evita dever dinheiro, evita o tabaco dos
outros. quando te chamarem pelo nome tenta
lembrar-te, ao certo, de qual é o teu nome, deixa
que te chamem princesa e sorri, envergonhado,
quando te derem dois beijos no rosto e uma das
outras mãos te descer pelas costas até às
nádegas. devolve o que te dão, regurgita o que
te dão, constrói uma casa para pássaros,
observa os camiões passando na rua, fazendo
estremecer as fundações das casas, à noite --
e também de dia, mas sobretudo à noite --,
recorta datas de dentro das agendas e alimenta
os teus animais com bocados de papel e insectos.
nunca te esqueças de devolver o que te deram.

12.10.15

black sheep

das coisas mais assustadoras é a anormalidade,
herbívoros silenciosos invadindo as cidades
rente à noite,
comendo carne nos becos e nas arcadas
e junto aos caixotes do lixo.

3.10.15

geriatria

as velhas
são dentes
a ranger
nas capelas
rezando o
santo terço
do rosário
batendo os
dentes o
queixo com
um ritmo
um sincronismo
intangível de
solidão e
de amor
e de
doença não
há como
não amar
as velhas
dantes novas
sem a
preocupação da
diabetes com
o fogo
na cona
de saia
arregaçada nos
celeiros sem
pensar na
melodia solitária
muitas décadas
depois às
dezoito e
trinta nas
capelas a
pedir ao
cristo saúde
dinheiro melhorias
várias ou
a não
pedir nada
a estar
ali apenas
porque sim