27.11.12

adereço

tenho de pôr os óculos
e endireitar-me na cadeira
antes e só escrevo depois.
o que escrevo são os
óculos, a cadeira, a música
consistentemente
irritante mas a contar para
estatísticas e, portanto,
constante e impositiva.
a minha boca cheira a
mãos que caminharam
sobre a língua, a dedos
que se enfiaram nos
sexos mais profundos, mais
secretos das mulheres.
a álcool.

26.11.12

os pés seguros

se o meu corpo
se abrisse como
uma casca
quente
quando tens
frio à noite
e te
protegesse

meu amor

seria dessa
forma.

24.11.12

cabo

(papá: ainda temos tempo de dar as mãos
no café em frente ao mar e ver as ilhas
no horizonte e acender cigarros atrás
de cigarros [o que se esconde atrás
dos cigarros? o que faz com que os
cigarros atrás de cigarros nos façam
sobreviver aos dias carregados de
nuvens e de lágrimas e ao céu nocturno
sem estrelas?] e beber copos de
brandy e depois dos estalidos com
a língua ["o prazer disto!", dizes,
fechando os olhos] abrir a boca
para "isto é o whisky dos pobres"
e ser o whisky dos pobres em frente
ao mar com os cigarros a secar-nos
os dentes e o oceano todo cinzento
da cor das nuvens ainda temos tempo
de criar raízes e de dar a mão já
adultos e ambas as mãos já mais
ásperas do que quando eras já
adulto mas eu ainda não e tinha
medo nas alturas em que te aproximavas
da orla das falésias porque podias
cair e sabemos os dois que o mar
não vomita os corpos com tanta
facilidade como se vê nos filmes e
talvez aparecesses nas ilhas
talvez o mar te cuspisse nas ilhas e
nesse caso nunca mais te via quando
ainda não era adulto mas tu já
tinha medo que caísses ao te aproximares
da orla das falésias porque a gravidade
e o vento e, papá, hoje ainda temos
tempo de segurar as mãos um do outro
porque a ferrugem do teu sangue
está dentro de mim e já sou adulto
mas ainda tenho medo que caias.)

Loyola

tenho os pés
frios dentro dos
sapatos e tenho
os sapatos
frios fora
dos pés. os
sapatos são
castanhos e
podiam aparecer
sós num vídeo
na televisão às
três e doze
da manhã
quando não
se dorme e
o som do planeta
mas mais o som
imediato do planeta
à nossa distância
assemelha-se a anjos
que recolhem
pálpebras
em cestas de vime
prateadas
tenho os livros
carregados de bichos
prateados que se
desfazem num pó
são insectos
são anjos
beijei a mulher
que amo antes
de voltar para casa
e o meu joelho
direito
está congelado.

22.11.12

verbo: descascar

não vou estar em lado nenhum, dia vinte e
sete. a vizinha do andar de cima tem duas
cuecas a secar à janela, sai para o
emprego todos os dias à mesma hora,
geme todos os dias à mesma hora,
vê o noticiário todos os dias à mesma
hora. a vizinha do andar de cima
ostenta uma qualidade de quem é
alheio mas, para si mesma, é
quotidiana, e as cuecas penduradas
são só as cuecas a secar à janela,
não são nenhuma afirmação de
feminilidade. mas para quem passa
ou para quem se senta à janela,
as cuecas da vizinha do andar
de cima são bandeiras num jogo
onde ela afirma ancas, cheiro,
coisas vermelhas que correm em
sítios escuros, e os machos sabem
que poderiam ser capazes
de fornicar a vizinha do andar de cima.
ainda começo poemas com
"diz-me", "responde-me", "ensina-me",
porque continuo a preferir que, a
estar errado, o esteja com a
verdade dos outros.

20.11.12

banho maria

o minério que compõe o coração, as entranhas,
é de um cobre sujo, uma película de cinzas,
por cima, talvez.

14.11.12

mãos feridas

repara que os poemas que me deste
os poemas que me deixaste
por papéis e por extensões mais
ou menos longas de pele e de
tempo são jogos da forca e
palavras. e não deixam de ser
os melhores poemas de sempre.
que nem notas onde as
tuas mãos tocam. ou quando, no
carro, te apercebes de que o
céu está diferente no sítio onde
toca nas árvores.