21.5.14

nas notícias falavam da gripe das aves

fala-me de dinheiro. fala-me antes de dinheiro. amanhã tens tempo
de no trabalho dizeres "fodi o poeta". amanhã é sempre tempo
disso. "o poeta falou-me de portas de mogno nas casas
amarelas onde se fazia turismo de habitação mas que estavam
sempre vazias. o poeta atrapalhou-se com a piça, não sabia o que
fazer com ela, nas mãos, tive de a guiar como se guia um cão
cego nos passeios, tive de o guiar e de o meter lá dentro e o
raio do poeta estava só semi-erecto, mas, olha, foi o que se
arranjou, ele estava ali e eu estava ali e fodemos. ele pediu-me
que lhe falasse de dinheiro em vez de me abraçar e fumou dois
cigarros antes de voltar para a cama, entretanto fiquei com os
pés gelados."

o poeta está só a olhar para a rua e a pensar que merda é
que está a fazer à sua vida, tu com os pés a esfriar, na
cama, que a casa do poeta é miserável e ele nem muda a roupa
da cama porque raramente a usa. o poeta já não abraça, o poeta
já não se irrita porque as mulheres fumam um cigarro no fim
de foder -- vai ele próprio para sala, no escuro, sem saber
o que fazer às pernas, tão parvas, tão imbecis, as pernas,
tão teimosas, a querer acreditar no amor com maiúscula, "tens
ali uma mulher na cama a precisar de ser abraçada", mas ao poeta
não há quem o abrace e portanto também já deixou de abraçar
quem precisa de o ser. nu à janela e com a vida a ser uma merda,
ninguém que lhe fale de dinheiro, que lhe explique "o dinheiro funciona
assim", tão mau na cama, tão reles, a piça ainda teimosa no amor
maiusculizado, a miudinha que veio aqui parar a casa porque
queria foder com o poeta. tu, na cama, a roer as unhas, com o
candeeiro ligado na mesa-de-cabeceira, ao lado do Rimbaud
e do Fernando Pessoa e do Joyce e do Vian. mas o amor
com maiúscula já longe de onde a luz do candeeiro chega,
já noutro país, a fazer compras em lojas de selos e de botões de punho.

ninguém explica ao poeta como funciona o dinheiro nem a piça
e precisa que lha guiem, às vezes, no meio das pernas, ele de olhos
fechados a tentar imaginar como será o amor ou porque é que a
rapariga não chega ou então talvez seja do tabaco envelhecendo as
artérias muito antes de ser tempo disso ou seja só
-- deus nos livre! --
falta de vontade.

16.5.14

tinteiro de impressora

noutro dia, talvez, hoje já não. tirar esta
folha do caderno, lambê-la, pôr-ta na mão,
"eis a minha boca, a humidade porca da minha
saliva, a verdade bacteriana que se me solta
dos dentes. este sou eu e quero que me entres
pelo corpo; onde não nos conhecemos preciso de
ti, ou, na idade, na beleza das construções
poéticas, num suposto domínio da linguagem,
preciso-te." preciso de ti, quero escolher-te,
arrancar esta folha que no outro axioma
tem um poema com o teu nome, tem palavras
desperdiçadas no discurso da ideia das tuas
mãos. dou-te as mãos mas não esta folha,
só que a intenção das minhas mãos perde-se
sem o papel. um dia trago-te centeio para
um pão, mas hoje noto que já sabes no silêncio.

mercy fuck

queima-me os ossos com ácido
de modo a que os possas
morder - este poema é um
osso para alimentar de medula
os meninos subnutridos da
áfrica subsaariana.
é amarelo o teu nome, que mágoa, há
pessoas que assentam assim nos nomes e
não cabem, como tu, com o teu corpo
a sair, a boca primeiro,
procurando, pedindo "água, mel, beijos",
o teu cabelo queimando, ardendo, em
argolas, cachos de anéis de queratina,
pequena, a cheirar a sangue e a nervos
e a cartilagens e a bichos vivos. só
lamentas o teu nome, "quer dizer amarelo"
como ovos e uma luz solar nos desenhos
das crianças.

7.5.14

arquimedes

comerias iogurtes gregos no processo da aritmética através do
qual concluías o conhecimento que hoje estudamos na
escola? penso em ti mais na salada com iogurte no centro
comercial do que velho e escuro lambendo a matemática.

vindimas

chave de água parada, um melro
roendo um pedaço de fígado,
a minha boca mordendo as tuas
mamas gigantescas à noite, as
mãos tacteando e felizmente tão
fáceis de encontrar no escuro,
enormes, quentes, rijas como montanhas
de carne luz cartilagem nervos sexo

a cheirar a pele e a líquidos
congelados
dentro de uma bateria,
com o ácido sulfúrico, a minha
boca poluída de sangue e de vontade,
a língua amando amassando as tuas mamas
tão grandes, no escuro, um pombo doente
comendo um pedaço de fígado no chão.

3.5.14

pulmão mecânico

dos primeiros sinais de velhice, felipa, é sentar-me a uma
mesa e irritar-me porque os miúdos a deixaram imunda.
a imundície irrita as pessoas envelhecidas. dos primeiros
sinais da idade adulta é esconder o isqueiro, para que
não nos peçam lume ou tabaco, "só tenho estes até
ao fim da semana", "já tive que pedir este, sabe..."
é nem notar que o mundo está a ir para uma
figura geométrica muito absurda, um poliedro de fumo.

arrancar as asas de um besouro

as tenazes penduradas nas paredes e as crianças
dormindo nuas no chão, em frente à lareira, a
sonhar com lagostas de cerâmica, feias, no dia
de anos de um amigo.
se menstruadas, as mulheres fodiam, entregavam-se,
riam-se, cantavam músicas num segredo,
"peido de cona por causa do ar, paredes
infladas de ar no vácuo, processos pneumáticos",
assim cantavam, nos quartos, enquanto os homens
apenas objectos, pois durante as fodas os homens
só estátuas, adereços, paisagens paradas e estáticas,
pensando em pássaros, pensando em recibos e em
tenazes, jamais cantando através do olho singular
da piça, por onde escoa sémen mas também mijo.
as bocas dos homens respirando sôfregas como as
das crianças dormindo em frente à lareira, as
portas todas escancaradas sem medo de que os
outros escutem o remorso da intimidade, a
engrenagem dos corpos desenferrujando poesia e
música como se um rio de óleo nas dobradiças,
como se o amor ocasionalmente fosse um advérbio
de modo, como se fosse uma paisagem descrita
num parágrafo de um livro datado de mil oitocentos
e oitenta e três. nas paredes as tenazes e a
tinta escamando, as bocas das crianças respirando o
chumbo, o amianto, a canalização dos corpos já
fraca, tão cedo, no dia de anos de um amigo,
cheios de sangue e com as mãos a explodir de intimidade.