24.7.13

rusticana (partículas de uma fibra óptica)

e o mar cantava dentro dos búzios com o peito todo
"não era o mar, era o sangue reverberando pelo búzio
adentro, era o som do sangue movendo-se por detrás
dos ouvidos, dentro do crâneo" era o sangue no
búzio repercutindo, um oceano escarlate movendo-se
com a lua e ademais caprichos, fechado no labirinto
do corpo, afinal; o mar uivava no búzio com o peito
todo, na praia o sol desaparecia atrás das cabeças das
mulheres de leste, que ficavam até mais tarde, nuas,
doiradas, as mamas redondas a caber em tantas mãos
hipotéticas (nas minhas, pequenas, tão não de homem),
a cabeça comia-lhes o sol pelo cabelo doirado e quando
abriam as bocas na escuridão os búzios repercutiam
o sangue, tinham mapas de esmalte e de neve no lugar
dos dentes, o mar cantava, gritava num desalento. por
que me nascem dentes do chão do corpo? abriam a
boca e iluminavam, esperavam numa ombreira de uma
porta hipotética, nuas, as mãos que lhes agarrassem
as mamas e a saliva que lhes corresse pelas costas
- pelo crâneo, como um mar de espuma e de sangue
e de esmalte. o chão do corpo era fértil mas apenas
para o cultivo de dentes, de mapas, de búzios.

9.7.13

leitmotif

leva-me a sério.
leva-me, a sério.

lava-me. sonhámos com
lavagantes de loiça nas paredes,
estamos tão kitsch, antiquados,
guardados. a sério.
lavamos lavagantes
levamos a sério
o kitsch dos lavagantes
lavados e brincamos às
escondidas enquanto é
tempo, as cerejas rebentam
na fruteira por cima das
ameixas vermelhas (um dia
o meu avô escreveu "ameicha"
já estava senil nessa altura).
lava-me na cerâmica,
diz "cona" sem medo,
"a minha cona é quase
de cerâmica, não tenhas
medo" (consegues
escrever tantas obscenidades
aqui e há quem diga que
isto é poesia?) (não
sei se há quem diga que
isto é poesia, herdei a
senilidade do meu avô,
a hipertricose auricular
há-de vir com o tempo,
se não morrer primeiro
como as cerejas que
explodem ao sol).
lava-me na cerâmica como
fazes aos lavagantes quando
os levas a sério.

olha para mim quando
atravessares a estrada,
diz-me adeus, muito a sério,
toma conta de ti quando
te fores embora.

cancerígena

fui à rua fumar mas deixei
o isqueiro
na casa de banho
numa daquelas bolsas
de plástico onde colocar
sapatos e chinelos
deixei o isqueiro
onde não era preciso
a casa de banho não
é para os pulmões
é para os rins
é para os intestinos.

o corpo tem tanta
sujidade invisível
tanto negro já sob
as unhas ainda tão
curtas na rua sem
isqueiro são três
da manhã e está
fresco na rua está
bom na rua e um
par de pessoas
veio-me incomodar
sentando-se na
mesa ao lado
debaixo das árvores
beijando-se com
a violência sôfrega
de quem come
de quem cobre
animais com cio
e uma das minhas
ex-namoradas diz-me
que a mulher que
amo agora é diferente
quando na verdade
o que quer dizer
é que não gosta dela.