26.3.15

meu pai costumava chamar-me hard reset

toquei-me à janela e ouvia
Archie Bronson Outfit e
sentia-me tão pós-moderna
tão alt lit
tão avant pop

com o dildo entranhado
na cona
e a outra mão tirando fotografias
nua
esperando que
algum vizinho
noutro andar

distante
com uma mão
segurando a cortina
da janela e a outra
apertando a piça

se viesse em meio
minuto.

25.3.15

gutural

dormir apenas esperar
pois ainda não é hora
na ficção do tempo

porque a ficção
bem arquitecturada
bem construída do
tempo acaba por
nunca ser inteiramente
nossa e tantas
vezes mais valia
dormir esperar

por quem vale a
pena e até lá
só no quarto de
luz acesa sob
os cobertores

fechar os olhos
morrer enquanto
viver não é assim
tão importante

hebraica

«quem morre nunca parte, quem parte morre sempre»



atravessaste um degrau, uma idade, uma porta dessas
casas abandonadas cuja vida permanece no vento e
nas mudanças diárias da luz do sol nas paredes e no
soalho;

atravessámos uma morte, vê: devíamos ter morrido,
devíamos ter dançado mas não, nem morremos nem
dançámos, tomámos comprimidos, fizémos tatuagens,
operações aos olhos, amámos, fingimos ter conjugado
uma gramática de amor, sobretudo, tirámos fotografias
dos nossos corpos em descanso e chegámos um
ao outro em silêncio e em segredo quando nunca
devíamos ter chegado, devíamos só ter adormecido,
ter partido para muito longe e ter esquecido

a vida um do outro
para que não nos magoemos mais nas lâminas no sangue
no cheiro a relva dos cabelos cortados da sujidade
dos corpos que a água não lava porque a água
já não existe como existia dantes onde um
abraço longo

uma estrela acesa na garganta quando falávamos embora
agora
devêssemos ter morrido como lagartixas a quem se calca
a cabeça contra o cimento no calor da primavera
devíamos ter calcado a cabeça um do outro contra o
chão contra o cimento para que não doesse
termos de continuar vivos termos de
fingir
comer a morte um do outro sem apetite

enroscar lâmpadas nos casquilhos ter de aturar os outros
dando conselhos ter de mentir ter de omitir ter de fingir
ligar mas pensar apenas no movimento helicoidal dos
filamentos das lâmpadas e continuar
a fazer generalizações continuar a odiar
pessoas continuar
a cometer os mesmos erros sempre

e dormir longe de toda a gente quase acreditando
que é melhor assim.

21.3.15

publicar título

haverá pão suficiente
na despensa para que
esperem à mesa durante
os meses necessários
e não morram de fome

contar-se-ão aves no
céu e peixes no mar
e histórias num lugar
intermédio onde nem
os pássaros ou os
peixes mexem ou
habitam

contar-se-ão contas de
rosários antigos e ainda
pesados das velhas que
foram suas donas noutros
anos longínquos sem se
saber já como rezar

escrever-se-á no chão com
a cana verde
há-de se esperar uma eternidade
por quem demora
convém sempre saber esperar
por quem demora

pois o pão dura na despensa
para que se não morra
à fome.