30.12.13

manual para não ter vícios

prendo as mãos - ato-as - à noite, quando me deito, para que
na urgência não me masturbe. obrigo-me a pensar nessas
coisas nobres que povoam a vida, os grandes vultos da
literatura não perderam a vida toda na inutilidade de falar
sempre de mulheres (ou homens); cresceram para fora disso, eis
por que são vultos.
menos aqueles que morreram cedo e hoje são analisados nos
círculos literários na possibilidade hipotética e quântica do
que a sua voz artística poderia ter vindo a ser.
mas a mim resta-me atar as mãos, que são pouco
nobres, à noite, e procuram a piça enquanto na cabeça
os rabos as mamas as pernas as conas as bocas húmidas
e entreabertas das mulheres que fui vendo ao longo do dia.

lêndeas e piolhos

em língua gestual no médio oriente
peço um copo de qualquer coisa para
beber desde que tenha mais de trinta
por cento de álcool. lembro-me de uma
amiga, longe, em espanha. não sei a
geografia das regiões, tenho uma amiga
que mora na parte de baixo de espanha.
preocupo-me com este poema, trato dele
como posso para que não seja uma repetição
dolorosa de outras coisas, penso em como
iniciá-lo mas agora já não vou a tempo
de o emendar, a minha amiga em espanha
provavelmente estará nua num quarto a
fumar um cigarro ao lado de um
homem qualquer que durante o dia vende
cartão e folhas de cartolina e papel de
cenário a alunos de artes visuais. há
o tempo necessário, ao menos, para que se
aprenda a pedir, no médio oriente, uma
bebida e outra palavra que, não sendo
"álcool", há-de ser alguma coisa que se
assemelhe a "vinho". com as mãos, não
com a boca. a boca guarda-se para
as pernas, para a cona longínqua da amiga
em espanha nua à janela enquanto um
homem cagando na casa de banho, à procura
de papel higiénico para não sujar de
castanho as cuecas e os lençóis.

melros para cortinas

os bolos de alfarroba que vieram do algarve eram para quem
gosta disso que é como quem diz passou demasiado tempo e estragaram-
-se na despensa dentro de uma caixa de metal para aqueles
bolos de manteiga noruegueses e bem vistas as coisas noruegueses
entre aspas claro dessas caixas que nas casas de tias
velhas de avós nessas casas escuras onde os cortinados
antigos sempre pesados e lúgubres vermelhos ou castanhos
servem de sítios onde arrumar agulhas linhas tesouras
dedais bocados de tecido às vezes.

endureceram na despensa os bolos de alfarroba que vieram
do algarve escapa à memória quem os trouxe ou a
cortesia que na altura certamente fez existir um obrigado.

29.12.13

obra reunida

ainda acredito
porque ainda
urge acreditar
que deve
haver (que
há) um
reembolso de
alguma espécie
para esta
imbecilidade da
vida quotidiana.

cera modeladora 7

vi um homem que gritava vi um homem
que se afogava e gritava na rua e os
outros homens ignoravam-no pois é
isso que se faz ignora-se as pessoas
que gritam e que se afogam
sair por cima ser a melhor pessoa
dar desprezo é tão melhor que gritar
porque

observei um homem que morria e
gritava e também não me movi na
sua direcção nem lhe estendi o
auxílio de um braço preferi ficar
sentado à espera da rapariga da
livraria com a hipocrisia da minha
dor pelo homem que se afogava
a achar que ao menos isso chega.

23.12.13

não gosto de romãs

ando com uma miúda da baixa,
embora - sejamos o mais francos possível -
as cidades pequenas, como esta,
não tenham sequer isso a que se
chama usualmente de "baixa".
e ela chupa-me enquanto vejo
os concursos da tarde na televisão,
chama-me "'môr" na casa de banho
enquanto mija de porta aberta.
compramos bibelots e sapatos, malas,
nunca um livro mas por vezes
jornais e revistas. não tem um
único disco em casa, mas toca
flauta e piano, embora nunca
me tenha sido oferecido constatá-lo.
em minha casa, na minha cama,
depois de me masturbar, com um
cigarro apagado nos beiços e um copo
de brandy vazio na mão, lembro-me
de chorar, lembro-me todos os
dias de lhe dizer no dia
seguinte que não a amo,
que não é semelhante às mulheres
(aos mitos) que amei a sério.
mas tenho ainda numa gaveta
aquela máquina depilatória para lhe
oferecer no natal.

20.12.13

paleontologia

passados dez anos matilde ainda escava na areia
um buraco com a paciência de criança
levando o balde ao mar e esvaziando-o
de cada vez. os homens vieram e partiram
e ela não notou na menstruação que
lhe ia fugindo nas ondas e nas rochas
no corpo que lhe cresceu -- em dez
anos o corpo muda -- nos seios nas
ancas agora quadris de mamífero
parideiro. contornando os esqueletos
fossilizados pelo caminho com cuidado
tentando apenas chegar um dia destes
ao núcleo da terra.

prosaica

são oito da noite -- vinte horas, oito PM -- e não consigo começar isto. não tenho como começar isto, embora tenha todo o tempo disponível para o fazer com qualidade, com estética: "pensa numa forma de iniciar este texto e fá-lo de maneira a que saiba a novo, não recorras sempre às mesmas imagens, deixa lá isso do amor, essa porra, essas lamechices, esses melodramas, esses circos. antes de mais, não te queixes tanto: tens uma vida maravilhosa defronte dos teus joelhos em peregrinação, há seis milhares de milhões (como é que porra é que se diz isso em português europeu padrão? biliões são o quê?) de pessoas no mundo, criaturas fascinantes prontas a ser descobertas, amadas, não há tempo para lamentar os desgostos, as fúrias, deixa-te dessas depressões insignificantes e vive a beleza da existência em harmonia com o teu irmão humano, o teu próximo, procura o deus das pequenas coisas, quando dormires, certifica-te de que tens os animais domésticos perto, um gato aos pés e outro na almofada, um cão por debaixo dos lençóis, contigo, aninhado naquilo a que vamos chamar 'o cavo das pernas'. não mintas, não finjas, emigra, move-te, mexe-te, labora pela tua felicidade, pois que a mereces!"

às oito da noite foi isto que consegui dizer, lembrando-me também do quanto me escapa a poesia, na verdade. o que domino não passam de imagens pequenas, desconexas, conceitos completamente despejados ao acaso, uma qualidade de desinteria emocional, mental, nunca construída num suporte de razão e de raciocínio. escapa-me a poesia pois a poesia tem de ser maiusculizada (A Poesia), há que se lhe dar e dedicar o verdadeiro valor, não ser preguiçoso e sobrecarregar o potencial leitor com o trabalho de descodificar sozinho uma coisa que nem para o autor faz sentido. isto para dizer que a poesia não é para homenzinhos heterossexuais sensíveis e lamechas, a época desses Artistas já passou, esse modo de cinismo orgulhoso com alguma sobranceria à mistura, os coitadinhos, os que bradam pelas mamãs, pelas vovós. não, este tempo, estes anos são dos verdadeiramente inteligentes, desde que se movam, dos que vão à bola, dos que percebem a matemática, a ciência, a engenharia, a medicina; os que decoraram os conceitos e os guardam numa estante metafórica junto do fígado, essas coisas são para estar nas vísceras, não nos pulmões ou no coração. a poesia é, afinal, dos que comem, dos que sofrem com estoicismo e nunca impingem ao seu semelhante o fardo dos seus problemas individuais -- que coisa tão minúscula, no oceano imenso da humanidade! que valor terá isso? nenhum.

deveria, pois, calar-me. ou exercitar a escrita de outra forma, isto é, trabalhá-la, usar de forma objectiva os dons e os carismas que a biologia e a evolução me proporcionam, não atirar o vocábulo "injunção" ou "transumância" para dentro do texto sem saber, ao certo e com legitimidade, quais os seus significados e significantes. ter ficado com pelo menos umas noções de teoria literária, pelo menos umas coisitas de linguística, uns conceitos de filosofia, sem ser só "não gostar de fenomenologia" ou "ser um discípulo da L=A=N=G=U=A=G=E school". deveria, pois, emigrar, deixar de procurar o amor, crescer -- é isso, crescer, amadurecer, decorar conceitos, amá-los, debitá-los, decantá-los, rezar-lhes como a um deus antropomórfico morrendo de reumático osteoporose hipertricose auricular. ir à bola com outros homens, ir ao estádio, ir ao café beber cerveja, assentar com uma mulherzinha normal numa vida normal com um emprego que me satisfaça economicamente e que me permita ter uma televisão em casa uma aparelhagem uma mesa e um fogão na cozinha pratos rasos e pratos de sopa e talheres e papel higiénico na casa de banho e água fria água quente gás luz aquecimento central um ou dois armários um cesto para a roupa uma máquina de lavar louça uma máquina de lavar roupa uma máquina de secar roupa cadeiras um secador de cabelo corta-unhas um cesto para revistas e revistas actualizadas um aquecedor a óleo um esquentador ou talvez uma caldeira eléctrica copos de vidro um açucareiro um saleiro uma garrafa de azeite uma banheira ou pelo menos um polibã e cortinas de banho toalhas de rosto toalhas de banho toalhas de mesa chinelos cintos uma fruteira meias cuecas pilhas AA preferencialmente recarregáveis uma mesa de cabeceira uma cama lâmpadas uma ou duas estantes um guarda-fatos tapetes napperons cortinas cortinados e tempo -- foda-se, ter tempo para aproveitar, para me deliciar com a mediocridade a que me releguei e que me oferece a poesia verdadeira, sincera, a poesia merecida de quem trabalha, de quem labora, de quem pensa com a lógica, de quem não desperdiça as palavras à toa. a poesia de quem pode, de quem consegue, não a poesiazinha de quem quer. perdoem-me o pretensiosimo das minúsuculas, perdoem-me o pretensiosimo da falta intencional de vírgulas, da intenção fácil de tentar construir a poesia (A Poesia) através de uma entediante lista de objectos quotidianos.

isto devia ter sido feito por um homem a sério, um homem rijo, um homem de sorriso aberto, sem merdas, sem lamechices, um homem capaz, que entenda que a vida não são só mulheres umas após as outras até que alguma, subitamente, "a certa" ("A Certa"), um homem pelo menos com o mínimo de subsistência económica, que vá à bola, que perceba da bola, que perceba de logística e sobretudo

que não se dê tanta importância a si mesmo no oceano da humanidade.

18.12.13

injunção #1

a casa de putas vazia ainda digere a púbis no
ruído dos passos dos miúdos ignorantes disso, só
a correr pelos corredores, pelas divisões, gritando,
fugindo. menos aqueles que na ponta dos dedos
procuram a reciprocidade do amor dos outros,
tacteando o ânus sob a roupa interior e notando
"é como o bolbo de uma flor ao fundo do
caule", na ignorância da semântica inexperiente,
desconhecendo, na verdade, o que seja sequer um
bolbo ou um caule, por essas palavras, com o
sangue invocado na pélvis a encher, a tornar rijos
os tecidos mais suaves como esponjas
debaixo de água num mar de sargaços.

prognatismo

o adereço, o artefacto, digamos, compunha-me;
era tão parte de mim como a pele ou os ossos.
houve um animal - uma besta - que morreu,
para que eu envergasse o adereço no pulso, à
vista de todos. "isto és tu?"
sim, isto sou eu, um animal morto, também,
com um custo, um preço, uma economia.
tenho tantas histórias alheias na sintaxe do
meu corpo e todas são mais relevantes que
qualquer cheiro que me tenham dado por momentos.

facto completo

vestíamos a nudez sem vergonha junto dos pêssegos e das
amoras e tocávamos na música do corpo um do outro
e falávamos e dizíamos
serpente e dizíamos
pele e escutávamos
as serpentes de pele e caminhávamos sobre a
superfície da água e sobre o fogo e queríamo-nos
mutuamente antes que a história nos destruísse as mãos.

14.12.13

carneiro

seguro nas mãos feridas do frio pós-apocalíptico
a carteira desbotada e gasta, ruça, do homem
quase morto na esquina. o dinheiro não vale nada
e em todo o lado há ruínas e incêndios, as sirenes
gritam avisos de bombas e no horizonte da
cidade as baterias anti-aéreas estão acordadas
contra as luzes. há gatos e cães que se alimentam
de braços, pernas, orelhas, olhos dos mortos empilhados
na praça, escombros indiferenciados dos outros
escombros feitos de cimento e pedra e ferro.
os candeeiros são como olhos intermitentes com
borboletas em vez de pestanas. tenho medo de falar
com estranhos enquanto fujo com a carteira roubada
a um homem meio morto que se sentava na própria
urina, encostado a um prédio desabitado. é isto que
vale alguma coisa: meia dúzia de papéis em bolsas
variadas, identificações, habilitações, fotografias de
pessoas que não sei quem são. uma vida inteira aqui
dentro, mais aqui dentro que dentro do casaco a
cheirar a mijo do homem a apagar-se como um
candeeiro, devagar, a cabeça pesando, caindo,
não é altura de falar de copos e de sorrisos e de
poesia, é altura de enterrar os mortos, de fugir
até casa com as carteiras e acender fogueiras
no chão com um fósforo, os documentos alheios
e algum combustível. aquecer as mãos, guardar
a carteira junto das outras, numa caixa de madeira
clara, os lados abaulados pela humidade e pelo vento.
lá em baixo os camiões do lixo vomitam a luz cor de
laranja contra as paredes e no horizonte as baterias
anti-aéreas decidem encetar a sua conversa de trovões
pós-modernos, com centenas de sóis fugindo pelo
céu acima, a correr para longe, tão longe desta loucura toda.

12.12.13

olho de gazela

há meses que enfim
há meses bons para
se morrer.
meses propícios
a que as mãos
se firam em plantas
com espinhos e
papéis.
"não conheço
pessoas que
morrem, só
pessoas que
conhecem
pessoas que
morrem". este
é o mês próprio.
dezembro é
o mês que me
cobre o
olho esquerdo
com uma moeda
de bronze. há
pessoas que são
como meses e
o inverso
também.

2.12.13

gama

o médico pergunta-me onde dói e não lhe sei responder. dói-
-me nas unhas, dói-me imenso nas unhas só que as unhas
são um tecido morto, não é suposto que doam, pois não?
é psicossomático. ou seja, é uma coisa da alma. convém
esclarecer que psiké é alma e não cabeça. a cabeça
não existe, apenas a alma, a fazer ruído com os papéis,
a dizer-me que o que dói são as unhas. sabia que
quando morrermos os cabelos e as unhas ainda crescerão
um pouco? é bonito, não é?, que as únicas coisas
mortas de nós ainda vivam depois de morrermos? nos
sonhos há um cavalo com a crina feita de gelo e
musgo e com os olhos pretos como se fossem feitos
de pedra vulcânica, baços, relincha como se o seu
organismo fosse metálico e esmaga-me o crânio com os
cascos. não sei onde me dói, nem sequer sei se há
alguma coisa errada comigo. urino e evacuo bem, com
regularidade, ando imenso tempo, sem me cansar, de vez
em quando constipo-me. gostava que os meus pulmões
subitamente se amarrotassem, sabe?, como os dedos da
alma fazem aos papéis. o tabaco está-me a fazer definhar
os pulmões, espero ter um cancro. não quero que me
tratem, a medicina moderna, permita-me que lho diga,
é uma imbecilidade. uma vez fiz uma lavagem ao
estômago e custou imenso, estive num corredor de
hospital com um tubo no nariz, sem me poder mover,
sem poder respirar, e sempre que abria os olhos
havia pessoas a morrer em todo o lado, com coisas
espetadas nas macas, que pareciam antenas. fale a minha
linguagem, se puder ser. fale com a língua.

30.11.13

cianeto

estava de bruços no chão quando os outros homens caçavam aranhas
no escuro e sobretudo no vão de escadas das casas em ruínas. ouvia
as mulheres que cantavam, chorava, agarrado ao apêndice que nunca
mais rebentava de lixo e de ossos minúsculos. ouviu cair um rim sobre
um banco, ouviu os cães arfando com a fome, soube a loucura dos
animais em torno dos tecidos moles do corpo humano; a sofreguidão
com que devoraram o rim sobre o banco. o rim caíra de uma árvore
como se fora um pássaro que não aprende a voar, caiu em linha recta
como uma maçã atingindo a cabeça dos físicos de que a história nos
fala. mas as maçãs não são comida para cães nem para lobos nem para
mulheres. no chão, de bruços, com a face esquerda encostada ao
solo, chorando, agarrando o apêndice, pedindo, rezando ao apêndice
para que explodisse e as mulheres se reunissem numa alcateia à sua
volta e lhe comessem as vísceras, que o plantassem numa cova pouco
profunda e lhe deixassem os dedos dos pés de fora, para que daí
nascessem árvores, acácias, salgueiros, coisas capazes de sombra
e de vergastas que deixem marcas e doam nas costelas e no lombo.

27.11.13

ostra

se me levasses às aulas de ballet como dantes
se me ignorasses enquanto o professor te elogiava
as mamas e eu ficava sentado numa das cadeiras
velhas ao fundo sem nada para escrever no bloco
de notas e sem nada para beber durante a espera.

lemos Pynchon e Vian quando tínhamos treze anos
foi inconsequente como termo-nos amado no
momento em que nos amámos abre aspas:
"ao menos amámo-nos" fecha aspas
mas às tantas nem isso. nunca me levaste às
aulas de ballet nem às aulas de violino mas
fodemos nas casas de banho da escola e é
certo que isso teve uma poesia qualquer

quanto mais não seja porque lemos Pynchon
e Vian aos treze anos e depois disso é tão
fácil ver quão luminoso e artístico e romântico
é foder numa casa de banho pública.

de todas as pessoas que se alimentaram do meu
coração foste a única que o filtrou como uma peça
de fruta e dele bebeu álcool e água e mel e no fim
lixívia.

5.11.13

tacho

à noite por vezes
o que há
para comer
é um resto
de caldeirada
de peixe
batatas com
escamas e
espinhas

e uns fios
de cebola e
tomate.

4.11.13

mercromina

também leste as revistas cor de rosa, sem nada para
fazer, na esplanada. e amaste os homens nas revistas,
as frases em espanhol que começavam com os pontos
de exclamação invertidos. podia amar-te se viesses
numa revista cor de rosa, se falassem do teu
dia-a-dia, do teu pijama, das tuas mãos, se
viessem fotografias tuas nas revistas.
leste revistas, aborrecida nas esplanadas, à chuva,
com o rosto encostado na mão direita, a querer
amar tanto as fotografias, as páginas.

21.10.13

vector

um quadrado, dava-te um quadrado para que me
abraçasses e um abraço não custa, não tem preço,
mas alguns homens têm de oferecer dádivas a mulheres
como tu por um abraço. tenho para ti um
quadrado se me devolveres um abraço. (daqui
queria o teu pescoço onde ao fim do dia
a boca farta do tabaco e do álcool pudesse
recolher-se como um homem que volta a
casa no meio da chuva.)

3.10.13

fala de um pressuposto

as matérias suaves e moles temem as matérias rijas
i.e. os olhos temem os dentes sobretudo porque
e se
afiados que rasgam e arranham e arrancam
e demais aliterações.
em miúdos dizíamos que não era medo
era respeito
mas a verdade é que era medo
era um medo tão grande
nunca foi respeito por coisa
nenhuma
era medo só
e é
ainda
das memórias das desilusões e das ilusões
e da solidão e de que nos batam que nos
magoem
não é
nunca foi
respeito é medo
é muito medo enorme sem medida
nas vísceras nos rins nos intestinos
nos pulmões.

uma amiga

ouçamos o samba na rádio
falemos dos assuntos
da ignorância dos que
votam
do capitalismo
lavando a loiça com
luvas de borracha
quase objectos
sexuais engrossando
protegendo
os dedos. o volume
da rádio onde se
desloca o samba
"gosto de samba
faz falta o samba"
no meio dos legumes
do resto dos legumes
no ralo da pia
no meio dos assuntos
pungentes
da verdade só nossa
embora comum também
noutros apartamentos
contíguos
calculamos
da ignorância dos que
votam
do capitalismo
dos preços dos ordenados
"porque alguns de nós
nasceram e agora não
sabem o que fazer com
isto ninguém nos
ensinou mas também
ninguém ensinou ninguém
e afinal aprende-se"
afinal aprende-se mas
estamos mimados
com os ralos da pia
por onde descem os
restos dos legumes
e também o samba
já que o som ocupa
espaço
e empurra
estes corpos
não necessariamente
na direcção um do outro.

como comer sardinhas

dizem os entendidos nessas coisas que desde que haja
animais de estimação em grande número e desde que
se escreva que isso chega que a felicidade ou um
protótipo dela devem ser apenas isso. os entendidos
nessas coisas não percebem muito disso.

2.10.13

livros sobre a secretária que, não o sendo, é uma mesa-de-cabeceira

somos poucos, já. bebemos tinto pelos gargalos
das garrafas, fumamos, partimos os vidros contra
o chão. somos tão poucos, somos tão pouco. a
psicóloga disse-nos isto e aquilo (a psicologia é
coisa de mulheres, o Freud é coisa de mulheres e
isso não é bom nem é mau, é o que é, séculos
disto, séculos de secularismo, desta coisa tão
patriarcal e elas têm de se agarrar a alguma coisa
para além do que é o que se vê o que se toca
o que se sente) nada fez sentido absolutamente
nenhum porque a psicologia é um artifício assaz
insuficiente para a religião. já não chamo por deus
à noite e não choro porque os meus pais vão
morrer, no escuro, na cama, porque sou adulto
e pressupõe-se que agora deus está morto e
que os pais são artifícios insuficientes dos quais
precisamos de prescindir. não tenho, nem nas mãos
nem nos olhos, a capacidade para viver e não
me apetece sobreviver. apetece-me deus e apetece-me
segurar no colo a cabeça de alguém que me
diga que não vai a lado nenhum, nunca.

e o Freud pode explicar isso o que quiser.
prefiro o que diz o Kafka.

4.9.13

recepção #8

vou no 3, a ler Anton Tchekhov, O Duelo,
no capítulo três, e é fácil e não é fácil.
estou doente, dói-me a cabeça de tantos
mecanismos que são necessários, estou doente
de amor noutra época e nunca agora,
penso na doença, vejo-a, está dentro dos
dentes e dói, o Tchekhov está no capítulo
três, não te esqueças, fechado sob o
cotovelo esquerdo - o cotovelo não está doente,
só a cabeça, a boca, o fígado. tantos
mecanismos necessários, as pulseiras não me
ajudam a sobreviver e no entanto não
saio de casa sem elas. era capaz de amar,
acredito que era capaz de amar; talvez o
melhor fosse não o saber, ter só uma
doença e esperar numa cadeira com o
Tchekhov fechado no colo, a doença dos
russos nos dentes, queria estar doente debaixo
de água por minutos, sozinho, queixar-me
por estar a morrer, ao menos era capaz
de amar no escuro, numa cadeira, confortavelmente
sentado sem precisar de comer, de falar.
"valho sozinho, todos devíamos aprender o valor
de nós sozinhos no amor de nós mesmos,
amar os outros é um desperdício." era capaz
de amar uma mulher sem me cansar, nunca
me cansei, mas agora estou doente, dói-me a
cabeça e era agradável que os outros se calassem.

seráfica

agora, que dormimos, arrastemos a intempérie
nas plantas dos pés. sabemos o lugar da cassiopeia
e de orion no céu, cartografemos, pois, as
estrelas; temos estes corpos que amadurecem
mas não duram um milénio, cobrimo-los
de gaze e de ervas secas. decoramos o
sítio das estrelas e dos oceanos, dos rios. e
dormimos, que o corpo pede, e dói-nos a
cabeça. arrastemos o vento e a chuva
nos pés, o lugar da intempérie é lá fora; agora
que dormimos e sabemos o nosso nome, onde
ficam os mares, as ravinas, os precipícios.
os nossos corpos amadurecem e crescem
para nada, quanto custa sermos só isto na
ingenuidade tremenda, na ignorância,
conhecemos o céu, o sítio das coisas,
a arquitectura da solidão e a filosofia e
o amor, onde tapar as feridas com a gaze
e onde aplicar os lábios. agora, que dormimos,
chamamos as coisas pelos nomes,
caminhamos nus em direcção aos rios
desconhecidos, evitamos as ervas secas,
os cavalos correm no escuro, esmagam-nos
o tórax. arrastemos a cartografia das cidades
das estrelas dos mares.

clorofluorcarbono

é tão mais difícil
o não-silêncio
do campo
do que o ruído
na cidade

porque os cães
as cigarras
os insectos
estão vivos e
quando falam
quando gritam
isso magoa
como um ponto
de interrogação
de um amigo
longe

mas nas cidades
habituamo-nos
aos comboios
aos aviões
aos carros
nas rotundas
às quatro da
manhã.

porque os aviões
os carros
os comboios
estão mortos
e fazem barulho
sem que digam
nada.

3.9.13

revelação

ao meu irmão factual

somos a mesma fibra
temos o mesmo cheiro
na pele
mas como um de nós
subitamente tão mais
útil?
e porque dói tanto
a dor do outro,
quando apenas?
não te vás
embora
nunca
(ainda que
tantas vezes)

luques

o tabaco há-de me corroer
como um ácido gasoso
hei-de perder as pernas
os braços
primeiro os dedos dos pés
já tenho uma sensação esquisita
uma hipocondria
quando coço os calcanhares
e por todo o pé uma
gangrena em formação
(sei que uma gangrena em
formação, ainda apenas um
projecto)

o cancro há-de me conhecer
o nome e há-de me tocar
por dentro do corpo
dos pulmões aos ossos
ao pâncreas
há-de salientar a minha
inutilidade
a minha
incapacidade

e vai ser tão luminoso
no escuro das unhas
nos dedos dos pés
que forem ficando pelo
caminho
apodrecendo
fertilizando o chão
para que nasçam
arbustos que ardam.

26.8.13

pode ser antes S. Domingos?

eu posso ainda sentar-me em frente
a este teclado e escrever isto. às vezes
(tantas vezes, e tu sabes) não quero e
ou
já não consigo, mas posso. falam-me
da injustiça do mundo. falam-me
da injustiça de teres morrido e eu
não e, sabes?, também a noto.

podia usar metáforas - podia abusar
de metáforas, meu amigo, falar de
luzes que se apagaram, das palavras
que nunca foram ditas, podia mencionar
a injustiça do mundo, gritar a injustiça
do mundo e de como isto funciona
tudo tão mal
mas a única coisa que tenho para
dizer é que morreste e algures
há saudades no fundo.

espero que quando morrer a maior
parte das pessoas que cá ficarem
diga mal de mim.

21.8.13

animal: a cabra

à Maria

conheço uma mulher só de fotografias e de poemas. é veterinária
e diz ser de Córdoba e quando escreve tem o amarelo da Andaluzia
nas palavras. vejo-a nas fotografias e é bonita ou se calhar
é por causa das palavras e dos poetas. e é do cabelo e dos
olhos e da pele e do sol. ela fala de cidades, há um sítio que criou
só para as cidades; fala em espanhol e atende pessoas e animais
em espanhol, agora que trabalha (conheço uma mulher bonita
de Córdoba, é veterinária; conheço-a só de fotografias e de
noite olho para o tecto do quarto e penso como será a sua
voz quando fala com os animais). ela escreve e quando escreve
não nota mas eu noto toda a Andaluzia e os animais selvagens
que o sol amansa, dormindo à sombra das árvores e das
construções antigas. às vezes penso nesta mulher espanhola
e penso em como é tão bonita nos poemas e nas fotografias
e tenho saudades de uma mulher que conheço apenas
de poemas e de fotografias. e queria dizer-lhe com a garganta
e com a língua e com os dentes e com os lábios e com os
músculos e com as cordas vocais "és tão bonita" ou outro
artifício poético muito autotélico que ela não percebesse;
como quando escreve e arrasta toda a Andaluzia nas palavras
e não o vê. e corre em sonhos no meio dos animais e do pó
e tem uma voz; tem o cabelo e os livros e o sol da Andaluzia
enorme e quente contra as costas. olha: perguntei a um
homem na cidade espanhola junto ao mar, que vivia a uma
rua do porto, se tinha visto um barco atracar e ele batia com
uma caixa de madeira no chão. a caixa estava cheia de parafusos
e moedas antigas, inúteis. ele magoava o chão com a madeira da caixa
e com o ruído do metal. gritou-me que os barcos até podiam
atracar do outro lado do mundo, seria o mesmo para ele.
estava ali à porta de sua casa o dia inteiro, parado, ao sol,
e arrastava-se para dentro sobre uma tábua, o corpo sem
pernas. há um sadismo dentro de mim e ainda bem que
não posso tocar a mulher espanhola que conheço só assim,
não posso corrompê-la nem posso salvá-la de nada. mas
leio-a e vejo-a nas fotografias e ouço-a falando com os animais
no calor. bato com uma caixa de madeira no chão; os barcos
até podiam atracar do outro lado do mundo, era-me igual.

20.8.13

ferro-velho revisited

sou igual a todos os homens que aparecem nas
fotografias
e quando desenterrarem os meus papéis e
os meus raros retratos
dos armazéns
no futuro
serei só uma estatística
sem dores nem nenhuma
peculiaridade de alma
sem nunca ter amado
sem nunca ter acariciado
as costas nuas de uma
mulher linda.
morto e acastanhado no meio
das caixas de cigarros vazias.

clarabóia

sei dar o silêncio
amar-te em silêncio
sem que nunca o
saibas e olhar-te
como quem sabe
que sabes (e sabes)
que te quero contra
a pele à noite cobrindo
a pele de areia à
noite e desejo que
desejes estes lábios
tantas vezes secos
e esta pele sem cheiro
sem húmus. posso
dar-te e dou-te sem
que o saibas uma
argila óbvia e também
lágrimas no centeio
dos olhos no reumático
dos ossos antigos
onde construo
redes e baloiços
para a imagem de ti
uma jaula luminosa
nos ossos onde te
dar uma liberdade
antitética. tenho-te tão
guardada tão
enterrada nos alimentos
quando te olho sei que
sabes sei que há
um magnetismo no
silêncio o amor é
uma posse o amor é
também e sobretudo
uma posse mas para
mim não e há alguém que
não te guarda nem te quer
guardar no meio dos
ossos mas que te tem

enquanto que eu
não.

19.8.13

limítrofe

sou onde
o som não chega
onde a música
nas telhas
das casas
como impulsos
contra a pele

nas mãos.

14.8.13

pobreza

estar em casa depois de uma tarde de tanta
inutilidade
e chorar com as pulgas que se multiplicam
na lã do cobertor e
mordem as pernas
os braços
a música que ainda se ouve
como aniquilarassassinarmatar
conjugar
as pulgas que mordem que
roubam sangue
apenas com os dedos se na adiposidade
fogem antes que as unhas?

chorar de tanta inutilidade
"és um inútil"
ao fundo da vida tantas mulheres
umas mais bonitas que outras
e nenhuma se lembra de mim

tantos estilhaços de vidro
tantos candelabros em casas
esquecidas

tanto suor nestes poemas
que só a custo ainda gritam
os verbos
antigos

as palavras anteriores

o "amor".

8.8.13

os dentes de Beth Gibbons

o corpo é um tabernáculo e deve repousar
após inúmeras semanas de solidão e de
desgaste. deve repousar como um mastro
de um navio no fim do oceano, no fundo,
nos intestinos do mar, deve esquecer-se
de como escrever, de como tomar chá
nos cafés vendo as pessoas. o poema não
deve tomar chá e o poema não deve
beber sangue nem vinho; deve estar no
meio disso, na água. porque o corpo
é um tabernáculo silencioso de mãos
em falta, fala directamente com deus e
espera-o; e mesmo que com a vergonha
da distância, com as minúsculas, o corpo
anseia por ser um campo de trigo onde
corram mulheres e crianças e velhos
primeiro, onde os animais consumam
as carcaças uns dos outros. a voz do
poema é um corpo que come sem apetite
no escuro da casa, os olhos muito
metálicos e mecânicos à procura na
superfície da limalha uma estrela de
grotesco. deve repousar como um mastro
assassinado sob as ondas, com os
animais marinhos e o azul; deve ser como
uma colina, como uma onda de terra, parada
na geografia e nos mapas militares. e escalar
o poema deve ser como escalar o corpo,
e escamar o poema deve ser como escamar
um mastro silencioso na solidão do mar,
com todas as lágrimas confundidas e invisíveis
umas nas outras.

24.7.13

rusticana (partículas de uma fibra óptica)

e o mar cantava dentro dos búzios com o peito todo
"não era o mar, era o sangue reverberando pelo búzio
adentro, era o som do sangue movendo-se por detrás
dos ouvidos, dentro do crâneo" era o sangue no
búzio repercutindo, um oceano escarlate movendo-se
com a lua e ademais caprichos, fechado no labirinto
do corpo, afinal; o mar uivava no búzio com o peito
todo, na praia o sol desaparecia atrás das cabeças das
mulheres de leste, que ficavam até mais tarde, nuas,
doiradas, as mamas redondas a caber em tantas mãos
hipotéticas (nas minhas, pequenas, tão não de homem),
a cabeça comia-lhes o sol pelo cabelo doirado e quando
abriam as bocas na escuridão os búzios repercutiam
o sangue, tinham mapas de esmalte e de neve no lugar
dos dentes, o mar cantava, gritava num desalento. por
que me nascem dentes do chão do corpo? abriam a
boca e iluminavam, esperavam numa ombreira de uma
porta hipotética, nuas, as mãos que lhes agarrassem
as mamas e a saliva que lhes corresse pelas costas
- pelo crâneo, como um mar de espuma e de sangue
e de esmalte. o chão do corpo era fértil mas apenas
para o cultivo de dentes, de mapas, de búzios.

9.7.13

leitmotif

leva-me a sério.
leva-me, a sério.

lava-me. sonhámos com
lavagantes de loiça nas paredes,
estamos tão kitsch, antiquados,
guardados. a sério.
lavamos lavagantes
levamos a sério
o kitsch dos lavagantes
lavados e brincamos às
escondidas enquanto é
tempo, as cerejas rebentam
na fruteira por cima das
ameixas vermelhas (um dia
o meu avô escreveu "ameicha"
já estava senil nessa altura).
lava-me na cerâmica,
diz "cona" sem medo,
"a minha cona é quase
de cerâmica, não tenhas
medo" (consegues
escrever tantas obscenidades
aqui e há quem diga que
isto é poesia?) (não
sei se há quem diga que
isto é poesia, herdei a
senilidade do meu avô,
a hipertricose auricular
há-de vir com o tempo,
se não morrer primeiro
como as cerejas que
explodem ao sol).
lava-me na cerâmica como
fazes aos lavagantes quando
os levas a sério.

olha para mim quando
atravessares a estrada,
diz-me adeus, muito a sério,
toma conta de ti quando
te fores embora.

cancerígena

fui à rua fumar mas deixei
o isqueiro
na casa de banho
numa daquelas bolsas
de plástico onde colocar
sapatos e chinelos
deixei o isqueiro
onde não era preciso
a casa de banho não
é para os pulmões
é para os rins
é para os intestinos.

o corpo tem tanta
sujidade invisível
tanto negro já sob
as unhas ainda tão
curtas na rua sem
isqueiro são três
da manhã e está
fresco na rua está
bom na rua e um
par de pessoas
veio-me incomodar
sentando-se na
mesa ao lado
debaixo das árvores
beijando-se com
a violência sôfrega
de quem come
de quem cobre
animais com cio
e uma das minhas
ex-namoradas diz-me
que a mulher que
amo agora é diferente
quando na verdade
o que quer dizer
é que não gosta dela.

14.6.13

fibromialgia

"o suor são micro-transacções?" olha: despiste o
soutien e não era esta a altura certa. seguras um
sabonete, fazes perguntas. a nossa pele tem o
odor desagrável das sardinhas assadas. "faz
hoje um ano". recapitulemos: não tenho nenhuma
irmã que me espere sob a ombreira da porta, na
casa desabitada onde as vespas fazem ninhos
nos caixilhos podres das janelas; nem sequer uma
figura com as mãos e os pés estigmatizados,
sentada à cabeceira da mesa, de pernas cruzadas,
enquanto reacende a teimosia de um cigarro
com um fósforo húmido. o suor são micro-
-transacções? eu sei lá o que seja o suor, sei
lá que metáfora pretendes usar, quando dizes
isso. afugentamos as pulgas do colchão com
a pressa de foder. faz hoje um ano. devíamos
era sentar-nos na borda do chão e chorar por
todos os familiares que nos estão a morrer de
cancro e de porcarias interiores. mas domina-
-nos a pressa obsessiva de foder e fumar, a pressa
de não saber, não possuir o requisito mínimo de
paciência para saber responder o que porra seja
o suor. suamos quando fodemos, foder é uma
micro-transacção que, de vez em quando, é muito
luminosa. mas outras vezes não.

13.6.13

um beijo electrónico entre tesla e edison

mandíbula que aperte o casquilho na manhã, que
atire de modo violento o tremor da paixão
contra a incandescência dos napperons, esses adereços
antigos e obsoletos cuja única função é a de
provocarem sorrisos condescendentes nas bocas das
gerações mais novas. um osso que fossilize
e guarde a ciência e a filosofia num segredo
que escorra pelo tempo como cera; e que solidifique
- a cera e o osso -
de uma maneira triste, a morrer sem sangue nem
feridas no fundo da corrente alternada.
mandíbula poética que nas mãos segure o casquilho
e o arremesse ao que se come, àquilo com
que se guarnece o estômago e as tripas. e
um prédio que se construa mas que, assim que
terminado, surja envelhecido e deixado ao abandono,
morada para pessoas à beira da morte, ossos,
instalações eléctricas que na noite desistam, respirem
convulsivamente na humidade e interrompam a
sintaxe da casa com o seu choro. janelas onde
mandíbulas rasgando ao longo dos vidros, com
tantas saudades dos campos de trigo com o
céu em cima repleto de corvos e, num
espaço, ao meio, de garças, em conjunto a
desenhar um homem cansado de todo o
chão petrificado. bocas que beijem bocas de
crianças sentadas ao colo, "velho porco", dedos
que como enguias de um mito poético perdido
procurem a carne viva sob a roupa interior.

umas meias rotas

- não tenhas vergonha de escrever poesia nos cafés, com toda
a gente a olhar como se alguma coisa estivesse errada
contigo. a poesia é isto, assim, e faz falta aos meus
ouvidos, sinto falta de te ouvir entre a luz e as sombras
do sol esgueirando-se pelos estores mal fechados (estragados)
deste quarto, quando acordas antes de mim.

a poesia é para miúdos, não é um trabalho
para velhos, a menos que se seja um autor reconhecido.

azulejo

na casa que a minha madrinha aluga
a estudantes da escola de artes e
design (&) fiquei a fumar cigarros
que tirei dos cinzeiros, deixados
pelas raparigas que ali moravam,
depois de ir à manifestação anti-tourada.
o meu corpo era só aquilo, à varanda,
no bairro azul, por cima da pizzaria,
no fim de te teres ido embora.
a televisão só tinha quatro canais
e em nenhum estava a dar nada
de interesse. telenovelas, sobretudo.
faz quase um ano e tinhas-te ido
embora no autocarro e ligavas-me,
nessa altura ouvia ainda a tua voz
ao telefone, o meu corpo com a tua
voz não era só aquilo, por cima da
pizzaria, com uma almofada dentro
de um saco de plástico, à espera
que me fossem buscar. podia ter
amado uma das mulheres que
estavam na manifestação. podia
ter-te esquecido logo nessa noite
e parece-nos tão certo, agora, que
isso teria sido o mais sensato
a fazer.

doméstica #1

quando regresso a casa
às duas da manhã
no degredo interior
de ter de viver
na província
quando a culpa disso
(que animal fugidio
a culpa) é minha
sei que posso
pegar na minha gata
e colocá-la em cima
da mesa com uma
única fatia de fiambre
e apagar a luz da cozinha

imaginar no quarto as
pupilas da minha gata
no escuro
enormes como faróis
de um barco de dentes.

5.6.13

quadrado perfeito

respira o que te parecer serem vinte anos
ininterruptamente
20vinte20
sem parar vinte anos
de respiração

(she was pregnant again and she was going
to name the baby 'Alguidar', after her
grandfather)

deixa que os mortos enterrem
os seus mortos e repara apenas
no arco
tão concreto
quando se dispara
um míssil.

turno da tarde

tenho a vergonha de um neófito pela primeira
vez diante de uma mulher nua. tenho o medo
da poesia pós-moderna a apertar-me o esófago.
tenho uma vertigem de luzes na parede do
quarto e lâmpadas acesas no tecto. como uma
criança pela primeira vez defronte de uma mulher
nua sentada na borda da cama. olho para as
mãos e não sei o que fazer com elas.
tenho um cigarro apagado nos lábios. dependurado.
uma piça.
tenho uma piça e com o medo de quem
vê uma mulher nua pela primeira vez
não sei o que fazer com ela e com as
mãos. tenho a poesia pós-moderna a estorvar
no esófago e no sangue que me endurece
a piça.

escritório

não vou ver a tua exposição de fotografia
porque não acredito em fotografia
não acredito em psicologia
não acredito no Freud.

creio no vinho tinto e n'O Capote
de Gogol.

croft em cálice morno

à uma da tarde começam os comboios para
são martinho do porto onde mora um amigo
ainda em 1967. em junho de mil novecentos e
sessenta e sete o calor da uma da tarde (treze
horas) incomoda as senhoras que esperam de
pé pelo comboio e se vão abanando com
jornais e chapéus e leques e uma pergunta-me
"não tem calor?" e outra afirma que está tanto
calor. o meu amigo tem os óculos na ponta do
nariz em são martinho do porto sentado à janela
de sua casa a ler Hemingway. a ler um livro do
Hemingway que ele escreveu quando tinha só
bigode ainda não a barba completa. em 1967
em são martinho do porto o Hemingway já tinha
morrido há seis anos. o meu amigo não tinha barba
e fumava muito. nessa altura falava-se pouco do
cancro dos pulmões e mesmo que se falasse
muito do cancro dos pulmões o meu amigo
não quereria saber porque ao menos quando fumava
não chorava ao menos quando fumava não
lhe fugia a cabeça para coisas e sentimentos
tristes. porque a cabeça das pessoas fugia muito
para coisas tristes à uma da tarde em são martinho
do porto em mil novecentos e sessenta e sete.
o Hemingway matou-se em julho de 1961. eu e o
meu amigo em são martinho do porto às três e
quinze da tarde ainda estamos vivos e a comer
pastéis de nata enquanto bebemos café em frente
à praia. quanto ao futuro. quanto ao futuro. que
se foda. hoje não se fala de cancro dos pulmões.

4.6.13

whisky primavera

esta coisa fica ligada mas eu
vou dormir. devia dormir. em 1967
a ser uma máquina que dorme.

23.5.13

ardor

chegar aos trinta anos e só
me restarem argumentos destes,
não sou bonito mas há pior e nem
sequer é uma piada embora soe como
tal; ou seja, é uma piada, é uma piada
tragicómica, é uma piada como
a vida das pessoas.

esgotou-se-me a poesia toda.

micro-infantilidades

espero que um
dia,
quando chegar aqui,
nenhum poema
que se leia
imediatamente

seja teu.

("teu")

22.5.13

la mort de l'auteur

não sei porque espero ainda
(talvez seja da altura do ano
e de ver nisto uma efeméride)
que surjas de novo quando
me sento sozinho ao sol junto
ao muro com as marias-café
e os bichos-de-conta - tudo
animais que se enrolam em si
mesmos - que caminhes ao de
leve sobre a relva com os pés
descalços e abras a boca na
minha direcção que me atires
a tua voz na minha direcção
(julgo não me lembrar sequer
da tua voz) e que me dês
frutos vivos de mãos de unhas
e que dobres as costas no
fim do meu cigarro do meu
desespero cancerígeno. e
ainda espero mesmo que saiba
mesmo que tenha toda a
certeza de que devia ter só
guardado as tuas fotografias
envolvendo os ossos e a
proteger-me da sombra longínqua
que os amigos deixam contra
o corpo. "a vida é assim" ou "a
vida é isto" e deve-se continuar -
o corpo continua sozinho sem
notar que continua sozinho é
como um planeta que funciona
porque funciona e mais nada. e
um pouco de mim está neste poema
e sei que me terias dito quando
era tempo de mo dizeres que
devia ser sempre assim em tudo
o que escrevo.

"I just saw myself naked in the bathroom mirror and felt like donating to whatever my cause is"

a misoginia nos poemas nunca é apenas a misoginia
nos poemas. posso dizer que quero uma mulher para
foder e isso é redutor porque uma mulher tem de ser
para mais do que foder e a palavra foder é horrível
dizem-me. uma mulher é para amar mas se amamos
uma mulher ela é incapaz de nos amar de volta porque
aceitemos isto as mulheres são incapazes de amar ou
pelo menos de amar como os homens são capazes
de amar. nenhuma mulher se arrasta por amor nenhuma
mulher morre por amor mas de qualquer forma falo
de um certo tipo específico de amor. talvez devesse
dizer "quero que uma mulher me use e me foda" e assim
não seria misoginia - de qualquer forma já não o era à
partida porque a intenção quando escrevo "foder" é um
usar mútuo um carinho mútuo que sobre que ainda dê
para duas pessoas. duas pessoas que se queiram e que
se descartem. é mau pedir a uma mulher "foder" é misógino
mas também não é melhor pedir colo e mama e ternura
porque as mulheres são máquinas - os homens são
máquinas só que mais disfuncionais - e não servem para
mães. os homens dão melhores mães que as mulheres.
os homens a sério precisam de mulheres a sério que
os usem e que os deitem fora. quero dizer "deita-me
fora no fim de usar" mas que ao menos numa especificidade
de um momento qualquer haja um carinho uma
simpatia comum que nos encha a língua de ciência e
de mecânica e de astrofísica.

14.5.13

rinite alérgica

hei-de ser como meu pai com apenas
rebuçados nos bolsos. rebuçados e
memórias de outros lugares e toda
uma incapacidade de falar de verbalizar.
os dedos nos bolsos à volta com os
rebuçados já moles do calor e nenhuns
dentes com que os mastigar só gengivas
só bolsos e dedos e cuticulas feridas
e quando no verão os calções
urtigas atrás da torre velha da faculdade
com uma amiga ainda longe desse sítio
de rebuçados a pensar
devia-te ter beijado ou pelo menos
devia ter tentado mas nada
não aconteceu nada e por isso o caminho
implacável da vida até aos bolsos
com os rebuçados e os conselhos de
meu pai coitado quase sempre tão inúteis
quando deus fecha uma porta abre sempre
uma janela
como se a função das portas não fosse abrir e
fechar e abrir porque tem deus de dificultar as coisas?
porque nos mostram contra tudo o que somos
que só merecemos isto se aquilo? por isso
uma vida sozinho só com rebuçados moles
nos bolsos (são locais tão poéticos os bolsos
mesmo vazios - sobretudo se vazios - embora
estes com rebuçados e dedos e memórias de
meu pai) uma vida de onde os amigos se
retiraram pouco a pouco sem nobreza nenhuma
sem despedidas concretas só passos desaparecendo
em direcção a longe até que nem isso só
lembranças de um corpo num espaço agora cheio
de nada - como se bolsos onde nem sequer
nem tampouco
os rebuçados tão como os de meu pai
só para ele só para mim os rebuçados moles
e a partir de uma certa altura nem isso porque a
poesia leva-nos até os dentes.

6.5.13

ocelote

desapareceste no portão acenando a um novo
homem, que não eu, e viste-me conforme
atiraste o caroço da maçã que acabavas de
comer para o lixo. ainda há tantas perguntas
a que talvez devêssemos dar resposta.
se ao menos os meus braços em certas
alturas à volta dos teus quadris de
animal exuberante e mitológico.

5.5.13

cometera uma falcatrua

a discussão fútil e irrelevante sobre se
preferíamos Star Wars ou Star Trek foi
o que nos aguentou uma tarde naquele
comboio, entre a origem e o destino,
e ainda continuo sem poder responder,
só me lembro do Star Trek já sem
o Kirk e o Spock, apenas o Jean-Luc
Picard, mas, ainda assim, creio que
prefiro Star Trek. não me adianta, sequer,
responder-te a essa pergunta, aqui parados
e separados, já velhos e prontos a desistir
de todas as coisas iluminadas que valem
a pena, a preferir um centro de mesa
só com flores de plástico das mais
baratas, sem paciência para as pessoas na
rua e para o barulho dos cálices de
brandy e aguardente nos cafés. nenhum dia
será como esse e se nessa altura não
alcançámos a verdade relativa da ficção
científica, seguramente não será hoje, aqui,
dentro de uma tarde de maio, num intervalo,
enquanto bebo um café numa chávena da
lavazza, azul e branca, que te poderei dar
uma conclusão aproximada. ambos errámos em
segredo quando decidimos apaixonar-nos pelas
pessoas que magoam e que não querem saber,
e hoje somos nós os dois quem não quer
saber sequer se o Star Trek é melhor que o
Star Wars.

ouriço do mar

nunca no rescaldo de uma morte
tivémos de atravessar com um nó
na garganta um aperto no coração
um mar de sombras e conduzir
em silêncio para uma parte distante
do país ou do mundo.
nunca nos coube sofrer o suficiente
para merecermos tocar no limite
da poesia.

2.5.13

catarina

devia-te ter amado a boca em torno de um dia
que não acabasse, devia ter-te levado a concertos
noutro tempo, noutra época, e ter-te abrigado
da chuva com o meu casaco. devia ter estado
contigo em silêncio numa sala, rodeados de
móveis escuros e pesados e papel de parede
azul com motivos florais enquanto segurávamos
a mão um do outro com o medo próprio de
quem precisa que o outro não fuja, não morra,
não desapareça repentinamente. devia ter esperado
cinco ou seis meses numa sala, segurando a tua mão,
enquanto nos preparavam uma fotografia, enquanto
construíssem uma fotografia de onde nunca nos
morressem as cores, as veias, a paixão e o carinho.
de perfil, devia-te ter despido e beijado as coxas,
lentamente, devia-me ter alimentado de ti e de
chamar orquídea ao teu sexo, devia ter chamado
cona ao teu sexo e bebê-lo conforme se abrisse
semelhante a uma orquídea, devias ter amado a minha
boca com uma orquídea quente em torno de
um dia que não acabasse, devíamos ter sido
felizes noutra época, noutro tempo, a sair dos
concertos e tu com frio, fugindo da chuva, para que
despisse o meu casaco e to colocasse sobre os
ombros. devíamos ter tido uma casa com uma
despensa onde existissem cestos de vime com
espinhas de peixe e escamas lá dentro, devíamos
ter ferido as costas e as pernas um ao outro
com espinhas de peixe, com ossos de pássaros
mortos, devíamos ter sonhado que dançávamos
com pessoas antigas, passadas, numa sala com
móveis sombrios atrás e papel de parede e cortinas
pesadas e escuras. devia ter amado a tua boca com
a minha boca com as minhas mãos ao redor de um
dia que não acabasse nunca, onde as palavras
chegassem e onde as pessoas jogassem às cartas
em silêncio, devagar, caindo do tecto em direcção ao
chão como penas de pássaros mortos, flutuantes,
com sorrisos de pó e de nada e olhos guardados
em armários escuros. devia ter-te levado a uma
estação de caminho-de-ferro e ter esperado cinco,
seis meses que nos fotografassem, que nos etiquetassem
e que nos arquivassem como numa memória naquele
filme que vimos durante uma matinée de quinta-feira -
em itálico sempre porque um estrangeirismo erudito um
francesismo -, que nos levassem para longe em bolsos,
em barcos a vapor que naufragassem a meio do oceano
para podermos viver eternamente num sítio azul escuro
onde devem pertencer as memórias aquáticas.
devia ter-te oferecido maçãs encarnadas, devia ter-te
pedido um beijo em contra-luz, à noite, perto dos
candeeiros e do quiosque octogonal já fechado, devia
ter-te dado flores. devíamos ter sido como unhas ou
cabelos, vivos depois de morrermos, mesmo que sejam
as únicas coisas mortas, de nós, quando vivemos.

as bicicletas no parque

"o que é que há de especial no blues?"
há uma angústia uma solidão uma dor
uma pobreza um amor doente um par
de lábios a desesperar por um dedo de
tabaco
disfarçados de deserto à noite quando
os bares abrem as portas e as bebidas
são mais quentes que os vidros que
os copos que os dias

mas só aqui postos em meio de dois mil e
treze no vento insuportável do litoral
oeste de portugal é compreensível que não
percebamos nada disso.

mamarracho

vi uma criança comendo folhas e
bichos, chorando,
alguns homens procuraram
nela qualidades de
misticismo, verdades escondidas,
uma sapiência ancestral,
o conhecimento das ondas
electromagnéticas,
do espectro ultra-violeta.
comia folhas e bichos,
chorava,
nunca tinha visto o
King Kong original no
cinema.

21.4.13

espirro

foi chão que já deu uvas
outrora
mas neste momento
dá uma cal muito branca
dá dentes e azia
e em nenhuma
loja
nos vendem um coração
mais capaz
ainda por estrear
com imensas vinhas
que dêem uvas
tintas e vinho
e palavras.

ectoplasma

no Barreiro podia-se fumar em quase todos
os cafés mas quando passaste lá uma noite
comigo ficámos só em frente ao rio a abrir
e a fechar as janelas do carro por causa da
condensação e jogámos jogos deveras
ridículos mas não queríamos saber

à noite nas canas de pesca umas luzes
verdes no escuro

fumámos no carro não foram precisos
bares nem cafés só os nossos dedos
relativamente ágeis na verdade do
tabaco - agora não temos quem nos
leve para lado nenhum e nenhuma margem
onde os homens pesquem à noite

não guardas nada daquilo que te dei
mas trago silenciosamente tudo o que
tocámos tudo o que queimámos durante
o verão.

15.4.13

quem parte e reparte

ninguém que cante, com uma voz válida,
atrás dos homens que ouvem.
ninguém que plante uma flor de nervos
de música estragada.
as melhores mãos eram aquelas cujos
dedos, alcalinos, magoavam, empurravam
contra o vidro.
ninguém que escreva a dor de quem
leia, nenhuma aula de simpatia no
meio do cheiro a mijo de gato.
ninguém onde a noite, nenhum
arquitecto que proponha uma forma
de construir casas próprias para o
corpo humano.
apenas o tabaco ininterrupto e os
pulmões convulsos onde ninguém mexe.
só pássaros, atrás dos homens que ouvem.

queratina

podias ter-me matado - as mãos lenta mas
peremptoriamente envolvendo o
pescoço. devias ter-me matado
quando fodíamos. podia ter morrido,
quatro lágrimas brancas de leite à
saída da piça, meu amor. morrer quando
podia. quando devia.

10.4.13

carneiro

sou má rês
má coisa
res, rei

sou mau
mauzinho
mesquinho
corrosivo
orgulhoso

mas sei
lamber
tão bem.

8.4.13

sandra

os teus poemas eram tão tristes e
os melhores poemas são os poemas tristes e
confesso que tantos anos depois
estou a ler os teus poemas antigos
e tenho vontade de chorar
de tanta beleza de tanta angústia
de ter sido tanto para tanta gente
que não soube vê-lo e a ti que o
viste
só dei a intensidade de ervas secas
e és a única pessoa a quem realmente
me dói ter contribuido para que os
poemas antigos
sejam tão tristes.

3.4.13

noventa

preciso de uma mulher a sério,
uma mulher para quem olhe e
saiba que é uma mulher a sério,
que queira um homem a sério,
um homem para quem olhe e
saiba que é um homem a sério.

moagem

os passos para longe
onde cavalos de osso
corram pelo púrpura
aveludado das cidades
destruídas e abandonadas

sem homens sem mulheres
sem gatos
para longe onde os poemas
nunca digam dentro de si
a palavra pele a palavra
deserto a palavra areia

só velhos porque os
velhos são antigos
homens antigas mulheres
que nunca chegam a
cumprir o seu desígnio
de homens de mulheres

e flores sob os cascos
e por motivos estéticos
dentro do sítio onde
tinham estado
os olhos.

29.3.13

rosto

é tão triste que numa semana todo o trabalho
toda a sobrevivência todos os planos
os amigos as vozes
tudo como madressilvas em gavetas abandonadas
de repente
e o céu da boca vítreo quando a masturbação
ter de pensar
tu
quando a masturbação que asco meu amor
ainda que asco que sobra de asco nenhuma
mulher és tu mais meu amor e quando a masturbação
tu
e isso entristece como entristece que numa
semana apenas todo o trabalho o labor de
sobreviver a ti deitado por água abaixo
pela pia abaixo e tu
tu
nunca vais ler isto porque ler é uma coisa
que se faz quando nos obrigam a estudar
agora somos adultos e crescidos inúteis
vazios portanto e não posso não devo sequer
mandar-te à puta que te pariu guardar-te
num saco de plástico com cascas de laranja
e pôr-te no lixo onde era suposto que estivesses
a barriga estúpida no prazo de uma semana
por causa do excesso de fritos e de desespero
já nada por que viver e com a barriga ainda
menos porque o meu valor meu amor é nulo
e nem deus me segura a mão no escuro porque
nem em deus acredito já só no amor
seja lá o que isso for acredito no amor
ainda que o amor esteja fechado muito longe
de mim e o veja da forma mais absurda e
imbecil de sempre como a barriga a impedir
porque a barriga tem impedido tanto no passado
que se apaixonem por mim mas mais que a barriga
o resto o invisível ainda que me arrependa ainda
que mude ainda que me torne
cada vez mais mulher que tu.

27.3.13

ralador de queijo

as palavras
os fonemas
os grafemas
que disse
que guardei
tinham
têm
em cada um
mais espaço
imagético
semântico
pragmático
que todas
as fotografias
que tiraste
e se a minha vida
são palavras
a minha vida
é melhor
maior
tem mais
espaço para
as coisas que
interessam
ainda que as
coisas que
interessam
tantas vezes
sejam as coisas
comuns
as coisas
vulgares
ordinárias
(nota que
quando as digo
isto é
quando as
ponho em
palavras
e as ordeno
e faço
aqui
uma quebra
de verso
a luz inominável
que se solta
delas
mais do que se
as aprisionasse
para sempre
numa das
tuas fotografias)
tenho os olhos
a rebentar
do ordinário
e é maravilhoso
mas em baixo
também
na boca
e nas mãos

doença em Santiago

"quero trair-te amanhã. convidar um destes homens
que passam na rua, recebê-lo em casa, deixá-lo
chamar-me de puta, de cabra, de vaca. olha, pedir,
mesmo, pedir que me chame nomes, que me foda
o cu, que me bata com força nas costas, nas
pernas, nas nádegas. estou cansada de ti, de
nós, de conversas e de cafés. de ter de tomar conta
de ti e de mim ao mesmo tempo. nesta cidade
estranha há-de haver um homem que me queira.
um homem a sério, não uma coisa como tu,
querido. amanhã vou trair-te quando saires para
ir ver museus, tomar cafés, apaixonares-te
pelas mulheres iguais a mim nos cafés. e não
te hás-de importar que te traia, não hás-de
querer saber, mas agora sabes. sabes que odeio
as tuas fodas lentas e carinhosas, a tua
meia-hora de minetes, a tua ineptidão física
quando me puxas o cabelo com os braços,
às vezes a incapacidade ridícula de pores a
pila na cona à primeira, odeio o teu olhar
de encanto, como se estivesses sempre a ver
o meu corpo pela primeira vez, o cigarro
irritante a brilhar no escuro, a descer pelo escuro
sempre que acabamos
de foder. não estou mais para isto, meu amor,
mereço melhor, mereço um homem, amanhã vou-te
trair e até gostava que levasses a mal, mas
sei que não queres saber, porque nunca falamos
de culpa mas a culpa, em ti, há-de ser sempre
minha."

3.3.13

cães

os miúdos têm dinheiro para câmaras
fotográficas aparentemente caras,
para óculos inúteis, sem graduação,
só emblemas de estilo perante os
outros. eu tenho trinta anos e
gosto dos cães velhos à beira da estrada,
à espera de coisa nenhuma,
enquanto lambem os colhões.

26.2.13

robustez

ama-me apoiada com as mãos
na parede da casa de banho
enquanto o meu corpo e o teu
corpo
árvores antigas entrelaçadas
e abaixo disso as pernas
e as calças
junto aos sapatos
ao chão,
sem o cuidado requerido
à sua eventual higiene.

títulos

queria ver as girafas no jardim zoológico,
quando acordou. disse que tinha sonhado com
o meu irmão, que num sonho amara o
meu irmão e que era estranho acordar ao
meu lado por isso o melhor era irmos ao
jardim zoológico ver as girafas, dar uma moeda
aos elefantes para um deles se mover em
direcção ao sino e o tocar, que o fizesse
toar por todos os outros paquidermes mortos
sob o sol, nos cemitérios de elefantes.
nas escadas do prédio caminhávamos para
um cemitério gravado na nossa memória.

25.2.13

faz uma bola no meu

sete
horas
de um dia
parado a ver
uma torradeira
afundar-se num
lago
até desistir

até concluir
"a cidade é lixo
está cheia de lixo"
e as pessoas
cidades
ambulantes
também.

um último suspiro cansado e com pus nas costas

para a Sara

a culpa é-nos tão fria nos dentes mas
não é minha se antes te deram coisas
tão vagas tão incapazes
meu amor
se foste um animal que me fugiu por
entre os dedos por entre a culpa nos
dentes e se corres agora pelos arbustos
incendiando tudo à passagem ao contacto
com os teus cabelos com as tuas costas
com as tuas coxas violentas de mulher
adulta. à distância vejo sem analisar
com um cigarro a nascer-me dos beiços
dos lábios no meu país de loucura onde
sei este futuro como uma coisa só minha
e lamento a imbecilidade de que te quiseste
rodear com vista a poderes sobreviver.

oitenta

homens tristes em cuja língua em cuja glote
se engole em seco, gaivotas em cujas penas
uma semiótica para outro país, "feathers",
"sorrows", polissemias variadas em cujas
mãos um sorriso nunca aberto uma ferida
nunca provocada. homens em cujos dedos
pedaços de grafite a desenhar no chão sóis
luas estrelas simples, um traço único, cinco
ou seis pontas, a lua uma bola uma esfera
uma semiótica. homens tristes pendurados
em cabides na rua nos autocarros a chegar
a casa para jantar para comer para conversar
às vezes com ninguém porque isto, enfim,
ter de viver sozinho, ter de aprender,
ter de falar, de abrir a boca, mover os lábios,
limpar os olhos de todo o algodão de todas
as espinhas de todos os ossos e ver claramente
"aqui", dizer, mexer, fazer, ter de, ter de ser
"assim". homens desconjuntados de cujos
pés se soltam uvas, olhos de pessoas mortas,
ao caminharem descalços no cimento. dias
minerais, ónix, sem pássaros sem anfíbios sem
insectos só com homens e mulheres atirados
lá para dentro, a jantarem a falarem a comerem
a pensarem mas a não verem porque remover
o algodão as espinhas os ossos de cima dos
olhos, essas coisas todas um estorvo à vida
ao pragmatismo da vida - as mentiras as ilusões
o amor porque o que importa são os sacos
de plástico a deixar vergões nos dedos
nos autocarros nos comboios, de pé, a
segurar a vida toda muito prática nos sacos
do hipermercado. a glote permite engolir às
vezes em seco e isso não existe mas o amor
também não existe e não deixamos de ir
morrendo lentamente por causa disso.

20.2.13

raquel

cheguei aqui cansada, a dizer as mesmas coisas
exactamente as mesmas coisas
a conversar com este homem que me afaga o cabelo
(quem me dera que este homem me afagasse o cabelo)
que me constrói um mosaico com jornais e revistas.
seguro-lhe as mãos e converso, converto,
acredito no que digo - minto. acredito no que
minto, estou cansada, cheguei aqui cansada de
dançar, de comer, de foder de vez em quando
em locais públicos, de vez em quando não, em
locais belos, íntimos, fechados do mundo, cápsulas.
estou uma vírgula um saco de papel a rebentar de
respiração, converso com este homem
(afaga-me o cabelo)
minto a este homem e arrependo-me no momento
exacto em que o faço mas depois de ditas
anos e anos e anos
séculos
como parar as coisas que se soltam? vê-las na
sua vida própria (estás louca), vê-las, observá-las
avançando pelo musgo do ar. cheguei aqui um
pequeno corpo, um pequeno planeta, com varizes
de frio nos dedos esguios, com um saco de papel
para onde respirar caso hiperventile, esta noite não
me apetece levar ninguém para casa mas ao menos
alguém que me afagasse o cabelo, que me dissesse
"amo-te"
que me mentisse
amo-
-te tanto. e me segurasse as pernas no frio.

19.2.13

riscaram-me o carro às cinco da manhã

julgo que um húmus qualquer, uma flor esquecida
no tampo de uma mesa, junto de canecas e de
pratos de barro. os dedos e as unhas e os cigarros
o tabaco as mãos os olhos os dentes os nervos
na escuridão, num canto, sobre o tampo da mesa.
a meteorologia não se enganou hoje, os homens
da meteorologia sem conhecimento exacto
enganam-se muitas vezes, mas hoje não, porque
a precipitação, os aguaceiros, o vento, embora
aqui dentro, com o cheiro a vinho, os enchidos
pendurados na parede, o homem atrás do balcão,
silencioso, a limpar copos com um trapo sujo,
a mesa de madeira ferida, complicada, com um
jarro de vidro e uma flor lá dentro, julgo que o
húmus disto, no fundo. julgo que noutro local
pessoas que conheço em bicicletas sobre pontes,
nas estradas. mas aqui o escuro, o cheiro a vinho,
os enchidos pendurados nas paredes, sobras de
porcos, suínos, nenhuma fiscalização, ninguém
passa facturas, ninguém quer saber, o homem
está silencioso atrás do balcão e a sua única meta
é limpar copos com um trapo, contar as garrafas
de vinho, de aguardente, ligar a rádio numa estação
ao calhas onde de hora a hora se ouçam as notícias
e a meteorologia por entre o ruído branco da estática.
julgo que uma antena no corpo por onde entra a poesia
como um vidro partido, comer a poesia como um
vidro partido, com pão e enchidos assados em álcool
à minha frente, julgo que um húmus, uma flor tão
absurda neste canto, junto à parede, coberta de pó
e de insectos pequenos, coberta de linguagem de
todos os dias, num jarro de vidro, perto dos
copos e dos pratos de barro, mergulhada em tabaco
e dedos e olhos e vinho e nervos, tão triste,
porque a poesia vem dos mecanismos magnéticos
do fígado e dos pulmões e da faringe, nunca
dos nervos.

18.2.13

caranguejo

sob a saia um segredo sujo
de mês a mês um animal
ferido e bruto a defender-se
a fechar-se dentro de um silvado

nestas alturas em que é preferível
não saber.

11.2.13

registo de temperaturas

os homens lavam o chão das casas no buraco
da viuvez. esperam. esfregam. as mulheres
raras que morreram e que não souberam que
ao morrer, ao partir, estavam também a matar.

final: a besta

dou-te uma flor destruída para nada
à cabeça tenho uma coroa e pó e juncos
com que construir um barco
mas insuficientes como os rins que
falham
o fígado
os pulmões
dou-te um silêncio de linha
nylon
nos lábios nas gengivas
uma flor uma raíz de gengibre
um coração parado
um umbigo.

vulgaridades

mijar no escuro
contra o vento
mijar as pernas
o nojo de mijar
no escuro
contra o vento
as pernas
mijar a poesia
no escuro quando
se escreve isto
uma amálgama
de dores e de nojo
de luto e mijo
no escuro
um atentado
grotesco contra a
poesia e a roupa.

10.2.13

uma simplicidade

às crianças tristes mascaradas no carnaval

(pudera proteger-vos, oferecer-vos
um tijolo ou um resto de cimento
com que pudessem construir muros
e nunca sofressem

seria dessa forma.)

fecho

a Daniel Faria

faltando um ano para morreres
- o teu ofício -
escrevias explicações sobre as coisas
e pensavas e desejavas Deus
no que dizias, no que nos deixaste.
e agora já passaram anos sobre
a tua morte e ainda me ilumino
sob as tuas palavras para Deus,
pedindo-te desculpa por, sempre
que te leio, serem em mim tão
capazes para as mulheres que amo.
as palavras ao teu Deus são as
palavras ao meu.

9.2.13

animal

as tuas pernas
dobradas
os joelhos
contra a minha
garganta
apertados
para que
a minha
língua
súbita
púrpura
roxa
entre os
lábios e os
olhos cerrados
a perder
a cor.

8.2.13

dança de salão

não sei guardar-me
fugir
de tudo o que dói
das saudades
e da tua boca
longe
eventualmente
para sempre.

jacqueline

"neste poema juvenil disse: esqueci-me dos
valores da ciência, por ti, das palavras que
se deviam maiusculizar de todas as vezes
em que se dizem, se pensam. num poema
juvenil disse: não vou voltar a casa para
o jantar, abro uma janela e vejo a sua
guilhotina aniquilar pássaros e insectos."

no intervalo de lavar a louça ouço tudo
e não posso responder nada. tenho um
mapa para as pernas doentes. a boca fala
limão, como o detergente da louça, sem
amoníaco, para que não nos intoxiquemos de
respirar. não volto para jantar, a janela
juvenil deste poema é uma guilhotina no
meu pescoço de pássaro, de insecto.

fita magnética

capa: variação sobre fotografia da autora.
um saco roto no fundo numa esquina
só um furo pequeno de onde por onde
a água
e o chão.
a fotografia da autora enquanto jovem
uma variação
a velhice recusada para a posteridade
uma luva rota por onde de onde
a água
e os dedos
as feridas
guardar tudo numa variação sobre fotografia
da autora
e a autora enquanto jovem porque a gramática.

5.2.13

Homem de Vitrúvio

é altura de o meu útero fazer um ensaio
fotográfico num local apropriado: uma
estrada de campo, com silvas e cardos
e homens e mulheres que falem de toalhas
de mesa; que atravessem pontes ao
entardecer com molhos de vides às costas.
o meu útero está ferido de toalhas de mesa,
de amor desperdiçado em teorias e em
esforços, estoicismos fora de prazo,
fora de tempo. está triste de estar
metido neste século e inventa outros tempos
aqui dentro. tenho um útero seco com
mãos selvagens que arranham e arrastam
o corpo pelo chão, numa estrada de campo,
com silvas e cardos e crianças sujas e grotescas,
belas, expressionistas, cada uma com o
seu útero aprisionado num bico de pássaro
doente. os miúdos desenham uma arquitectura
no chão e comem abelhas vivas, para que
os úteros não morram. o  meu útero, uma
urtiga com saudades imensas de tudo aquilo
que dentro de si poderia ter sido, se
as mãos, os olhos, os lábios feridos
tivessem deixado.
ofereci por um cálice de brandy
que não está a
nem vai
servir para nada
um euro e setenta e cinco cêntimos.
dir-me-iam
"era dinheiro mais bem gasto
noutra coisa."
talvez. mas é o que sobra
para manter a alma oleada e a
funcionar na medida do possível.

4.2.13

pó é zis

amo tanto essa mala vermelha que o braço
arrasta, entrelaçada, pelo corredor fora.
podia deitar-me ao lado dessa mala vermelha,
esta noite, e sussurrar-lhe musgo e líquenes
avermelhados. entender o movimento de rotação
dos corpos celestes, mas calar a boca, que
"corpos celestes" é uma expressão feia. dizer,
comovido, entre soluços, "o mundo precisa é de
mais malas vermelhas."

procura as coisas

um braço,
é tudo o
que te
peço.

um braço
que me
afogue
o pescoço
e me
obrigue
a morrer.

1.2.13

mensagem

não digas
"é como regar flores de plástico"
fora do
contexto em que
o disseste pela
primeira vez. guardo
num país que é nosso
esse contexto e retiro-te
portanto
o direito de fechares
longe de ti o meu amor
dizendo que agora
é como regar flores
de plástico.

tarantella

gasto o que resta do corpo em acções
aparentemente inúteis; beber um copo
de vinho tinto, tomar um comprimido,
acender um cigarro, vestir umas meias,
lavar os dentes. em toda a memória
nenhuma destas coisas serve para nada
e no entanto perpetuo-as como se
servissem, sou um autómato moderno,
orgânico, com nervos em vez de fibra
óptica, com um coração em vez de um
êmbolo, com feridas em vez de fios
descarnados. tenho o amor dentro
da boca, uma besta, o amor, na
boca ou num jarro de flores vazio,
apenas água, um resto de mar, no fundo,
um resto de mar no fundo do corpo
e pouco resta do corpo, embora as
mesmas acções inúteis se mantenham.
gasto o resto do tempo, acendo um
cigarro, inspiro, expiro, os dedos
mudando de posição, rodando o
cilindro incandescente na ponta como
se fosse um sexo de papel, vejo o
fumo, gasto o cigarro, acabo o cigarro,
deito fora um cigarro. tomo um comprimido,
visto as meias, bebo um copo de vinho
tinto e sinto o frio e passo as mãos pelo
cabelo; danço o que posso dentro de
um corpo que seguramente não é meu,
cada fibra disto diz pertencer a um
outro, noutro local, mais capaz e certo.

31.1.13

se ao menos o onanismo

cansam
os
gatos
e os
cães
e as
pessoas
na rua
a
passear
os cães
com
ou
sem
trela
e os
casais
que passeiam
de mão
dada
com
ou sem
trela
com ou
sem
amor
e os carros
azuis
escuros
às voltas
na
rotunda
a não
darem
descanso
à ferida
como
uma língua
nas
gengivas
e os
gatos
esperam
em casa
ao fim do
dia
mas
isso
não
ajuda
nada

rigorosamente.

30.1.13

hexágonos #1

a minha idade ilumina uma época
por dentro. uma cabeça inteira feita
de frigoríficos, máquinas de lavar
roupa, caloríferos estragados e mãos
de estátuas de bronze esverdeadas,
dessas que os lagos cospem de manhã.

28.1.13

post-it

na quarta-feira, à noite, ainda quarta-
-feira, para nós, quinta, para o resto
do mundo saudável e capaz, a fumar cigarros
atrás de cigarros - um mistério,
a nicotina, à noite -, na solidão das
ruas ou na solidão maior de
nós, as almas desirmanadas,
mal arrumadas nos armários do
corpo, parados à porta da
residência universitária feminina,
a ver as pernas das estudantes
de arquitectura de design de teatro
as pernas bonitas a não pertencerem
a nenhuma mulher concreta, real,
só pernas, nuas, a acabar nas costas,
passando no corredor iluminado
a caminho da casa de banho
a caminho dos quartos
e no fim ou no princípio das
pernas uma ou outra cona, uma maldição,
diríamos, com os cigarros atrás dos
cigarros, flores atrás de flores, para
que seja mais bonito, mais
campestre, mais bucólico, flores
secas, enroladas em papel fino,
no meio dos lábios, uma cona das
caras, uma ferida inútil por onde
ao menos na quarta-feira ainda pode
entrar e sair tabaco (flores, fumo, morte),
nós, tão incapazes, tão destruídos, com
tanto negro nos pulmões, com tanto
desencanto nas unhas, com um ou outro
poema ao fim ou princípio das pernas,
a ver as pernas das estudantes universitárias,
a separar as pernas das estudantes universitárias,
que é isso que o mundo nos pede,
mesmo quando só queremos dar amor
e um abraço, mesmo quando somos
pessoas tristes que estão presas na solidão
assustadora das nossas próprias almas.

27.1.13

11

resta um nome no meio da lenha
queimada. um rosto, no incêndio que
foram as tuas pernas, as tuas costas,
o teu peito, o alimento dos teus
lábios.
o meu corpo há-de parar de funcionar
antes que o teu nome se acabe.

26.1.13

osso

porque um poema com a palavra
flanco
pode ser tão ou mais bonito
que um poema com a palavra
saudade,
mesmo que as saudades que se
sintam sejam de um flanco
alheio. se um poema disser
saudade, poderá também estar a dizer
flanco. este
está.

20.1.13

cesura

do silêncio ainda me falam e trazem dores
velhas, amigos com os olhos fechados e a
boca cheia de pó por dentro, os pés lentos
sem paz alguma nas plantas, os pulsos fracos,
os sinais de vida muito distantes, o cheiro do
carvão no nariz. a electricidade nas pernas
onde já nunca a tua cabeça, já não mais um
colo terno para a tua cabeça destruída da
vida e da guerra do amor e da psicologia,
onde dois peixes nadam à procura de alimento.
posso trazer um pão de dentro do silêncio e
parti-lo para alguns amigos, mas os seus
dentes já não servem e a tua cabeça já
não quer caber no meu colo, ainda que
as minhas pernas tenham uma electricidade
que te pertence até que seja um tempo
de fim das coisas.

16.1.13

tronco

respiro com dificuldade
para cima da água
quente
do vapor da água
quente. a ponta dos
dedos
está gelada e toca
nas coisas sem
sentir. a música
fecha-se sobre os
olhos de maneira
a parecer uma carta
sem destinatário.
o mundo podia ser
um lugar melhor.

15.1.13

#2

ela não bebe água da torneira
e espalha o brie no pão como se
fosse manteiga e o pão fica
tostado no forno eléctrico.
e eu como o pão com brie
mas não ouço as palavras -
não tenho de ouvir as
palavras - porque o ruído
de mastigar o pão tostado
se sobrepõe às palavras.
a dor sobrepõe-se às palavras,
às maçãs, às laranjas.
não consigo comer kiwis
nem puré de batata porque
vomito tudo. vomito tudo
sempre, até palavras.

Maria

dizer à minha avó
"amo-te"
enquanto ainda der.
telefonar-lhe,
estar com ela.
um de nós pode
desaparecer
entretanto.
não gostava de
deixar coisas
por dizer.

11.1.13

personalidade limítrofe

pouco a pouco
a rouquidão na
garganta avisa-me
de que o chão está
molhado no caminho
para o café. um
quarto
de hora de água
e de chão
de inverno.

10.1.13

Justerini & Brooks

no movie for us tonight. the taste of
liquor on the lips burns them. our lips
are wounded due to the cold and the
humidity. almost all great authors are
dead, now, only we remain, trying
our best not to be forgotten, drinking,
eating cheese, writing non stop bullshit.
this isn't the time for movies, it's getting
late in here. all great authors have been
dead for a long time, it's saddening.
our pain lies deeper than our ribs,
our heart, our lungs. closer to the
kidneys, actually, when they burn
after we drink too much, lips bleeding,
numb. what happened to us? there's
no answer to this question. it's thursday,
movies are opening in theatres all over,
but this is no night for movies, no
night for sad rendez-vous, we drag
ourselves through life, through nights
like this, we starve, there's no place for
us. our lips covered in scrapes. our
eyes are tired of air and humidity.

9.1.13

Mateus 18:22

S.

és uma flor frágil e selvagem
que tento guardar o melhor
que posso à vista de todos.
se tivesse nascido morto
não te podia dizer que te amo
e nem sequer sete vezes
mas setenta vezes sete.

dínamo

este sou eu. uma sombra de tabaco
pelos cantos, um miosótis espezinhado,
a escrever pequenos poemas
narcísicos
porque ninguém toma conta de mim
e a verdade é que nunca ninguém
tomou conta de mim nem nunca
ninguém vai tomar conta de mim
um bocado. eis-me, pois, com
livros e com amor à volta, tudo
a soltar-se dos poros, um vapor
de literatura amor egoísmo dor
por esta ou por outra ordem,
a pensar, a dormir, a sentir, a
viver numa sobrevivência
quotidiana. quando as pessoas
partem sem morrerem era mais
fácil que um de nós morresse e
sempre me pareceu mais fácil e
justo que essa pessoa fosse eu.

saudades de uma cafeteira de alumínio

as noites são
o pior. compostas
só de idas à
casa de banho,
viagens minúsculas
para urinar. as
noites nem deixam
que se descarregue
o autoclismo.
bebo água nas
noites e tapo-me com
os lençóis de flanela
mas o pior
são as noites.

8.1.13

bula

dizem que o amor aos trinta anos
é tardio. são aranhas, a partir dos
trinta anos, estão envelhecidos, até
um pouco mortos, inchados de
desilusão e de realidade. bebem
chás estranhos nos cafés. voltam
para casa. há sempre uma casa
para onde voltar. mas amar aos
trinta anos, dizem, sentir paixão
aos trinta anos de idade, é tardio.
vivem como crepúsculos perpétuos,
caso os crepúsculos fossem aborrecidos.

corta-relvas

espero que ainda haja tempo para um último cigarro,
antes do fim. que ainda dê para um último cigarro, ao
preço de agora, que já é alto o suficiente. espero que
ainda seja tempo para rever retratos, para nos sentarmos
na praia, ao fim da tarde. não se ouve ninguém na rua.
parece quase sempre tarde demais, mas no entanto
continuamos aqui para nada.

7.1.13

ortopedia

este poema devia ser uma fotografia, não
fora o facto de este poema já ser uma
fotografia, só que melhor. porque quem
olha para este poema pode ver todas
as fotografias que quiser ver e, desse
modo, este poema só não é uma fotografia
para quem não conseguir olhar para ele
e ver isso. não será culpa do poema,
porque, olhando bem, atrás das palavras
há imagens, dentro das palavras há imagens,
por isso este poema devia ser uma
fotografia e é.

o leite que profanámos coalhou

meu amor,
gostava de te
guardar
como uma serpente
que guardasse
um bicho de conta
ao sol
enrolados
um no outro
e em nós mesmos
tudo frio
mas o sol
no sangue
ou por fora
de um exoesqueleto
que nos proteja de todo
o mal do mundo
e dos outros.
e dar-te o meu
corpo sintonizado
com o mundo
real e pernas
que andem
braços que peguem
olhos que
vejam.
uma boca que fale
e que beije
com carinho
as omoplatas
as unhas
e unhas que nunca
morram
que aumentem
sob o solo
no fim.

breviário de teofanias

ficava sentado na sala do capítulo, sozinho,
com os ratos e os livros e com os ratos que
dentro de si já tinham livros, depois de tantos
dias a comer papel, lia os livros e os livros
só tinham morte lá dentro, pelo menos os
que importavam. eram muitos e cheios de morte
mas no entanto a morte nunca chegava, na
sala do capítulo, perdido no meio de corredores
e de um labirinto de outras salas com quadros
de paisagens e de rostos austeros que olhavam
por baixo das sobrancelhas pesadas com um
ar acusatório, do alto da sua beatitude. e
comia tinta e papel quando o pão não chegava,
havia muitos dias em que o pão ficava esquecido
e a água, o vinho, porque era complicado
chegar-se à sala do capítulo. lia poemas no
meio dos livros, mas eram poemas que falavam
baixinho de teorias e de lógicas esquisitas,
de flores secas, todos repletos de flores
amarelecidas, de gavetas fechadas à chave
e nenhuma chave que as abrisse. os poemas
nos livros eram como os livros, só moviam os
maxilares para dizer "morte", mas a morte não
vinha porque na vida há mais coisas que não
se metem nos poemas ou nos livros, e os poemas
ou os livros chegam e não chegam para que se
viva. mas os ratos não sabiam ler e por isso
viviam dos livros, e quando apareciam mortos
às vezes tinham pasta de papel mal digerida
a sair-lhes da boca.