26.8.13

pode ser antes S. Domingos?

eu posso ainda sentar-me em frente
a este teclado e escrever isto. às vezes
(tantas vezes, e tu sabes) não quero e
ou
já não consigo, mas posso. falam-me
da injustiça do mundo. falam-me
da injustiça de teres morrido e eu
não e, sabes?, também a noto.

podia usar metáforas - podia abusar
de metáforas, meu amigo, falar de
luzes que se apagaram, das palavras
que nunca foram ditas, podia mencionar
a injustiça do mundo, gritar a injustiça
do mundo e de como isto funciona
tudo tão mal
mas a única coisa que tenho para
dizer é que morreste e algures
há saudades no fundo.

espero que quando morrer a maior
parte das pessoas que cá ficarem
diga mal de mim.

21.8.13

animal: a cabra

à Maria

conheço uma mulher só de fotografias e de poemas. é veterinária
e diz ser de Córdoba e quando escreve tem o amarelo da Andaluzia
nas palavras. vejo-a nas fotografias e é bonita ou se calhar
é por causa das palavras e dos poetas. e é do cabelo e dos
olhos e da pele e do sol. ela fala de cidades, há um sítio que criou
só para as cidades; fala em espanhol e atende pessoas e animais
em espanhol, agora que trabalha (conheço uma mulher bonita
de Córdoba, é veterinária; conheço-a só de fotografias e de
noite olho para o tecto do quarto e penso como será a sua
voz quando fala com os animais). ela escreve e quando escreve
não nota mas eu noto toda a Andaluzia e os animais selvagens
que o sol amansa, dormindo à sombra das árvores e das
construções antigas. às vezes penso nesta mulher espanhola
e penso em como é tão bonita nos poemas e nas fotografias
e tenho saudades de uma mulher que conheço apenas
de poemas e de fotografias. e queria dizer-lhe com a garganta
e com a língua e com os dentes e com os lábios e com os
músculos e com as cordas vocais "és tão bonita" ou outro
artifício poético muito autotélico que ela não percebesse;
como quando escreve e arrasta toda a Andaluzia nas palavras
e não o vê. e corre em sonhos no meio dos animais e do pó
e tem uma voz; tem o cabelo e os livros e o sol da Andaluzia
enorme e quente contra as costas. olha: perguntei a um
homem na cidade espanhola junto ao mar, que vivia a uma
rua do porto, se tinha visto um barco atracar e ele batia com
uma caixa de madeira no chão. a caixa estava cheia de parafusos
e moedas antigas, inúteis. ele magoava o chão com a madeira da caixa
e com o ruído do metal. gritou-me que os barcos até podiam
atracar do outro lado do mundo, seria o mesmo para ele.
estava ali à porta de sua casa o dia inteiro, parado, ao sol,
e arrastava-se para dentro sobre uma tábua, o corpo sem
pernas. há um sadismo dentro de mim e ainda bem que
não posso tocar a mulher espanhola que conheço só assim,
não posso corrompê-la nem posso salvá-la de nada. mas
leio-a e vejo-a nas fotografias e ouço-a falando com os animais
no calor. bato com uma caixa de madeira no chão; os barcos
até podiam atracar do outro lado do mundo, era-me igual.

20.8.13

ferro-velho revisited

sou igual a todos os homens que aparecem nas
fotografias
e quando desenterrarem os meus papéis e
os meus raros retratos
dos armazéns
no futuro
serei só uma estatística
sem dores nem nenhuma
peculiaridade de alma
sem nunca ter amado
sem nunca ter acariciado
as costas nuas de uma
mulher linda.
morto e acastanhado no meio
das caixas de cigarros vazias.

clarabóia

sei dar o silêncio
amar-te em silêncio
sem que nunca o
saibas e olhar-te
como quem sabe
que sabes (e sabes)
que te quero contra
a pele à noite cobrindo
a pele de areia à
noite e desejo que
desejes estes lábios
tantas vezes secos
e esta pele sem cheiro
sem húmus. posso
dar-te e dou-te sem
que o saibas uma
argila óbvia e também
lágrimas no centeio
dos olhos no reumático
dos ossos antigos
onde construo
redes e baloiços
para a imagem de ti
uma jaula luminosa
nos ossos onde te
dar uma liberdade
antitética. tenho-te tão
guardada tão
enterrada nos alimentos
quando te olho sei que
sabes sei que há
um magnetismo no
silêncio o amor é
uma posse o amor é
também e sobretudo
uma posse mas para
mim não e há alguém que
não te guarda nem te quer
guardar no meio dos
ossos mas que te tem

enquanto que eu
não.

19.8.13

limítrofe

sou onde
o som não chega
onde a música
nas telhas
das casas
como impulsos
contra a pele

nas mãos.

14.8.13

pobreza

estar em casa depois de uma tarde de tanta
inutilidade
e chorar com as pulgas que se multiplicam
na lã do cobertor e
mordem as pernas
os braços
a música que ainda se ouve
como aniquilarassassinarmatar
conjugar
as pulgas que mordem que
roubam sangue
apenas com os dedos se na adiposidade
fogem antes que as unhas?

chorar de tanta inutilidade
"és um inútil"
ao fundo da vida tantas mulheres
umas mais bonitas que outras
e nenhuma se lembra de mim

tantos estilhaços de vidro
tantos candelabros em casas
esquecidas

tanto suor nestes poemas
que só a custo ainda gritam
os verbos
antigos

as palavras anteriores

o "amor".

8.8.13

os dentes de Beth Gibbons

o corpo é um tabernáculo e deve repousar
após inúmeras semanas de solidão e de
desgaste. deve repousar como um mastro
de um navio no fim do oceano, no fundo,
nos intestinos do mar, deve esquecer-se
de como escrever, de como tomar chá
nos cafés vendo as pessoas. o poema não
deve tomar chá e o poema não deve
beber sangue nem vinho; deve estar no
meio disso, na água. porque o corpo
é um tabernáculo silencioso de mãos
em falta, fala directamente com deus e
espera-o; e mesmo que com a vergonha
da distância, com as minúsculas, o corpo
anseia por ser um campo de trigo onde
corram mulheres e crianças e velhos
primeiro, onde os animais consumam
as carcaças uns dos outros. a voz do
poema é um corpo que come sem apetite
no escuro da casa, os olhos muito
metálicos e mecânicos à procura na
superfície da limalha uma estrela de
grotesco. deve repousar como um mastro
assassinado sob as ondas, com os
animais marinhos e o azul; deve ser como
uma colina, como uma onda de terra, parada
na geografia e nos mapas militares. e escalar
o poema deve ser como escalar o corpo,
e escamar o poema deve ser como escamar
um mastro silencioso na solidão do mar,
com todas as lágrimas confundidas e invisíveis
umas nas outras.