25.11.14

Santo Agostinho

ter tempo nas mãos e tantos livros acumulados para ler, a envelhecerem
ao jeito de fruta, de roupa, mas não fazer nada com o tempo porque o tempo
afinal
inexistente, uma invenção dos homens para explicar mais ou menos as
deslocações no espaço. não fazer nada com as mãos na falta de uma
inclinação mais prática e física, tamborilar os dedos nos tampos das
mesas dos cafés e das tascas, ler dá trabalho, escrever dá trabalho
embora não devessem. observar o movimento dos caracóis e das
lesmas nos degraus das escadas da casa, era tudo mais fácil se
fosse mulher, se tivesse amigos, se não tivesse feito carraças
esvairem-se em sangue, espetando-lhes alfinetes quando era criança.
ter uma garrafa de vinho vazia para me queixar às pessoas de não
ter dinheiro sequer para vinho barato e ter o Howlin' Wolf
incessantemente a tocar num gira-discos, o vinil riscado de modo
a que seja mais literário fazer essas analogias estúpidas com a vida.

29.10.14

termo

a ternura é um barco que apodrece sem uso junto a uma casa
abandonada numa planície; ridículo sem mar nem água por perto
só a humidade do ar destruindo a madeira e os miúdos correndo
no meio dos escombros, partindo unhas, imaginando oceanos
imensos nos campos de feno, um mar amarelo, muito mijo
ardendo pelos olhos fora. a ternura é uma flor teimosa que
insiste na música da madeira a decompor-se do barco, é um
medicamento contra infecções urinárias a rir-se na cara da
medicina ocidental.
a ternura é as mãos dos poetas velhos a levar cálices de aguardente
à boca, a falar de barcos onde não era suposto que houvessem
barcos, a lembrarem-se de homens e de mulheres que foram
como objectos e decidiram um dia levar as suas metáforas para
outro país menos complicado.

3.10.14

da falta do dadaísmo

os anti-depressivos em cima da mesa de cabeceira e
alguns nas gavetas das cómodas, todos fora do prazo
de validade, como algumas vidas, como em alguns momentos
qualquer uma das vidas, para algumas pessoas,
existir-se aqui, pensar-se no facto de se existir aqui,
as lâminas de barbear descartáveis da wilkinson a
ganhar ferrugem no armário dos medicamentos,
sobre o lavatório, na casa de banho, os pássaros nas
árvores e os gatos à espera, no passeio, mas sempre
os anti-depressivos já a não fazer sentido nenhum, frascos
tombados e meio cheios, máquinas de pastilhas elásticas,
super-heróis de banda desenhada dos anos 60,
kitsch e ridículos, fotografias de mulheres que vêm com
as molduras, girafas no jardim zoológico, gorilas,
leopardos, todos mortos antes de tempo, a não saber
lidar com o fim dos prazos de validade, em cativeiro.
ninguém com quem falar, o telefone fora do descanso
ainda que já ninguém pegue sequer num telefone
só uma ou outra amiga, quando se lhes acaba o saldo
no telemóvel. em casa de avôs há caçadeiras nas paredes
mas aqui só há remédios e tentativas domésticas,
farmacológicas mas sempre domésticas, de panaceia.

28.9.14

salomé

pedi à minha mãe que dançasse, mas só se
queixou da idade, da velhice.
a minha mãe parecia uma maçã reineta
muito prestes a soltar-se de uma árvore.
num desses dias em que se devia dizer
"amo-te", mas só nos saem folhas de jornal.

17/IX

as mulheres a colher silvas como se fossem
tesouros, ferindo as mãos, pensam no outono
e em trompetes com surdina, desafinados,
na boca seca, nos lábios de homens escuros,
cinzentos, desiludidos, em bares velhos as
mulheres colhendo silvas como quem colhe
palavras que arranham e cortam e magoam.

15.7.14

zoologia

ouçamos os pavões caindo do tecto no chão da sala,
sobre o tapete, partindo os pescoços, cantando,
morrendo. ouçamo-los quebrando nozes com os
bicos, quando é o tempo, os crâneos esmagados
por automóveis na praça, como os crâneos esmagados
por cascos de cavalos, nos sonhos de infância, os
olhos vítreos só já lugares para moscas e pó e formigas
e derrames sanguineos dizendo "no sopé dos montes,
onde o vento é rejeitado pelos muros de pedra e terra,
as janelas não fecham e ouve-se o mar aqui fechado
dentro, como uma alma penada, como alguém que
preferiu ficar em vez de aceitar que se morre"

os pavões cantando, morrendo, caindo do tecto
como insectos mal se instala o verão e o calor no
sopé das montanhas, nas casas caindo de humidade
e de barulho do mar, resistindo sabe deus como
ao vento.

14.7.14

alimentação

j.

ela também precisa de comer ainda que não da mesma
forma pois o amor dos alimentos é maior contra os seus
lábios sobre a sua língua - é 490 vezes maior, é setenta
vezes sete maior
porque é para sempre

ela precisa de comer, de se alimentar, de se manter viva,
mantemo-nos vivos uns pelos outros e por vezes por nós
próprios também e os frutos na boca e na língua e os
dentes nos frutos (nunca os frutos nos dentes) e os dedos
nos frutos, nas cascas, que cheiro a laranja é este? quando
entravas na sala, as gengivas carregadas de frutos em pequena
e agora em maior também, cuspindo os caroços das ameixas
para a mão, apertando-os nos lábios, empurrando-os com
a língua num beijo inverso, a fruta amando-te mas eu
490 vezes, 70x7, para sempre.

8.7.14

dead man

dos suicídios lentos e dos para-suicídios já não
havia muito mais a dizer, por isso substituiam-
-se as palavras por répteis e por pedaços de tecido -
roupa que envelheceu, calças que já não servem -
e os psicólogos não entendem nem de répteis nem
de palavras por isso ficam silenciosos finalmente,
sozinhos a pensar em glandes e em clitóris e
em chupetas na boca de adultos com fraldas.
os cavalos partem em filas em direcção a um
suicídio lento, para serem cola nos trabalhos manuais
dos miúdos da escola primária. os poetas estão todos
doentes e preferem falar de cavalos que de suicídios.

12.6.14

dos vícios

este é o tempo para partir espelhos, para louça feia nas
paredes, para actividades, para palavras menos capazes,
este é o tempo em que se vai a pé para casa e se
pensa, entre aspas, "ao menos há uma casa para onde
voltar", ainda que a casa para onde se volta seja só
um casulo muito remoto, um contexto de tijolos e
cimento e ferro e tubos de metal ao jeito de veias
e mofo e musgo e bolor e fungos ao jeito de uma
doença, um cancro. este é o tempo em que a casa
já não existe, foi-se embora nas mãos resolutas das
pessoas que ainda queremos, que ainda amamos, ainda
que no coração - na alma - que imaginamos na cabeça
nos tentemos convencer "amámos".
este é também o tempo em que nos falham os isqueiros,
em que as pessoas se esquecem dos nossos nomes. é
uma época para chorar, para nos esvairmos, desolados, em
lágrimas acres: eis que dói não saberem o nosso nome,
dói de um modo tão profundo, de uma maneira tão
incisiva. nesta hora plantámos patas de coelho nas fazendas
dos nossos avós e não germinou coisa nenhuma; o
nosso esforço foi em vão. na miséria das casas (não
lares, casas-somente) ainda lamentamos a louça feia
pendurada nas paredes, os espelhos partidos, as fotografias
por onde passaram décadas de pó e se foram esquecendo
sobre as cómodas, recordações falsas de pessoas e de
coelhos que foram acabando, que foram deixando de
ser viáveis biologicamente e se tornaram só louça
muito feia, memórias muito inúteis para encher poemas.

21.5.14

nas notícias falavam da gripe das aves

fala-me de dinheiro. fala-me antes de dinheiro. amanhã tens tempo
de no trabalho dizeres "fodi o poeta". amanhã é sempre tempo
disso. "o poeta falou-me de portas de mogno nas casas
amarelas onde se fazia turismo de habitação mas que estavam
sempre vazias. o poeta atrapalhou-se com a piça, não sabia o que
fazer com ela, nas mãos, tive de a guiar como se guia um cão
cego nos passeios, tive de o guiar e de o meter lá dentro e o
raio do poeta estava só semi-erecto, mas, olha, foi o que se
arranjou, ele estava ali e eu estava ali e fodemos. ele pediu-me
que lhe falasse de dinheiro em vez de me abraçar e fumou dois
cigarros antes de voltar para a cama, entretanto fiquei com os
pés gelados."

o poeta está só a olhar para a rua e a pensar que merda é
que está a fazer à sua vida, tu com os pés a esfriar, na
cama, que a casa do poeta é miserável e ele nem muda a roupa
da cama porque raramente a usa. o poeta já não abraça, o poeta
já não se irrita porque as mulheres fumam um cigarro no fim
de foder -- vai ele próprio para sala, no escuro, sem saber
o que fazer às pernas, tão parvas, tão imbecis, as pernas,
tão teimosas, a querer acreditar no amor com maiúscula, "tens
ali uma mulher na cama a precisar de ser abraçada", mas ao poeta
não há quem o abrace e portanto também já deixou de abraçar
quem precisa de o ser. nu à janela e com a vida a ser uma merda,
ninguém que lhe fale de dinheiro, que lhe explique "o dinheiro funciona
assim", tão mau na cama, tão reles, a piça ainda teimosa no amor
maiusculizado, a miudinha que veio aqui parar a casa porque
queria foder com o poeta. tu, na cama, a roer as unhas, com o
candeeiro ligado na mesa-de-cabeceira, ao lado do Rimbaud
e do Fernando Pessoa e do Joyce e do Vian. mas o amor
com maiúscula já longe de onde a luz do candeeiro chega,
já noutro país, a fazer compras em lojas de selos e de botões de punho.

ninguém explica ao poeta como funciona o dinheiro nem a piça
e precisa que lha guiem, às vezes, no meio das pernas, ele de olhos
fechados a tentar imaginar como será o amor ou porque é que a
rapariga não chega ou então talvez seja do tabaco envelhecendo as
artérias muito antes de ser tempo disso ou seja só
-- deus nos livre! --
falta de vontade.

16.5.14

tinteiro de impressora

noutro dia, talvez, hoje já não. tirar esta
folha do caderno, lambê-la, pôr-ta na mão,
"eis a minha boca, a humidade porca da minha
saliva, a verdade bacteriana que se me solta
dos dentes. este sou eu e quero que me entres
pelo corpo; onde não nos conhecemos preciso de
ti, ou, na idade, na beleza das construções
poéticas, num suposto domínio da linguagem,
preciso-te." preciso de ti, quero escolher-te,
arrancar esta folha que no outro axioma
tem um poema com o teu nome, tem palavras
desperdiçadas no discurso da ideia das tuas
mãos. dou-te as mãos mas não esta folha,
só que a intenção das minhas mãos perde-se
sem o papel. um dia trago-te centeio para
um pão, mas hoje noto que já sabes no silêncio.

mercy fuck

queima-me os ossos com ácido
de modo a que os possas
morder - este poema é um
osso para alimentar de medula
os meninos subnutridos da
áfrica subsaariana.
é amarelo o teu nome, que mágoa, há
pessoas que assentam assim nos nomes e
não cabem, como tu, com o teu corpo
a sair, a boca primeiro,
procurando, pedindo "água, mel, beijos",
o teu cabelo queimando, ardendo, em
argolas, cachos de anéis de queratina,
pequena, a cheirar a sangue e a nervos
e a cartilagens e a bichos vivos. só
lamentas o teu nome, "quer dizer amarelo"
como ovos e uma luz solar nos desenhos
das crianças.

7.5.14

arquimedes

comerias iogurtes gregos no processo da aritmética através do
qual concluías o conhecimento que hoje estudamos na
escola? penso em ti mais na salada com iogurte no centro
comercial do que velho e escuro lambendo a matemática.

vindimas

chave de água parada, um melro
roendo um pedaço de fígado,
a minha boca mordendo as tuas
mamas gigantescas à noite, as
mãos tacteando e felizmente tão
fáceis de encontrar no escuro,
enormes, quentes, rijas como montanhas
de carne luz cartilagem nervos sexo

a cheirar a pele e a líquidos
congelados
dentro de uma bateria,
com o ácido sulfúrico, a minha
boca poluída de sangue e de vontade,
a língua amando amassando as tuas mamas
tão grandes, no escuro, um pombo doente
comendo um pedaço de fígado no chão.

3.5.14

pulmão mecânico

dos primeiros sinais de velhice, felipa, é sentar-me a uma
mesa e irritar-me porque os miúdos a deixaram imunda.
a imundície irrita as pessoas envelhecidas. dos primeiros
sinais da idade adulta é esconder o isqueiro, para que
não nos peçam lume ou tabaco, "só tenho estes até
ao fim da semana", "já tive que pedir este, sabe..."
é nem notar que o mundo está a ir para uma
figura geométrica muito absurda, um poliedro de fumo.

arrancar as asas de um besouro

as tenazes penduradas nas paredes e as crianças
dormindo nuas no chão, em frente à lareira, a
sonhar com lagostas de cerâmica, feias, no dia
de anos de um amigo.
se menstruadas, as mulheres fodiam, entregavam-se,
riam-se, cantavam músicas num segredo,
"peido de cona por causa do ar, paredes
infladas de ar no vácuo, processos pneumáticos",
assim cantavam, nos quartos, enquanto os homens
apenas objectos, pois durante as fodas os homens
só estátuas, adereços, paisagens paradas e estáticas,
pensando em pássaros, pensando em recibos e em
tenazes, jamais cantando através do olho singular
da piça, por onde escoa sémen mas também mijo.
as bocas dos homens respirando sôfregas como as
das crianças dormindo em frente à lareira, as
portas todas escancaradas sem medo de que os
outros escutem o remorso da intimidade, a
engrenagem dos corpos desenferrujando poesia e
música como se um rio de óleo nas dobradiças,
como se o amor ocasionalmente fosse um advérbio
de modo, como se fosse uma paisagem descrita
num parágrafo de um livro datado de mil oitocentos
e oitenta e três. nas paredes as tenazes e a
tinta escamando, as bocas das crianças respirando o
chumbo, o amianto, a canalização dos corpos já
fraca, tão cedo, no dia de anos de um amigo,
cheios de sangue e com as mãos a explodir de intimidade.

28.4.14

ervas para pães ázimos

a minha mãe é um esqueleto conduzindo uma mota que
devia estar num museu
no méxico em estradas onde ninguém passa à excepção
dos mortos e dos velhos
pois os velhos são quase mortos já vestem a roupa
de quem come à mesa dos que faleceram já falam
essa língua silenciosa com a boca inchada de ar
escaravelhos terra água vermes
a minha mãe pára pelo caminho e cozinha tijolos
em fornos e diz
«construam fábricas e abandonem-nas passados oitenta
anos para que no futuro os vivos recordem as
vossas palavras e os vossos nomes.»
e a minha mãe come as raparigas bonitas no
pó e a mota devia estar num museu mas move-se
o motor ainda a empurra na doença e no amarelo
que não é a cor preferida da minha mãe mas
era a cor preferida da mãe da minha mãe e a
minha mãe escreve um poema de dentes de vermes
e procura a sua mãe que mesmo viva já via
o que os mortos vêem já escutava os mortos
quando o padrasto da minha mãe junto das margens
do rio tejo em cacilhas se acometia ou pelo menos
uma pequena percentagem de si uma âncora de
cobre enterrada no forno da mãe da minha mãe
para cozinhar tijolos de cancro de ossos de nervos
e a minha mãe nos cactos com um poncho sem
saber como beber o álcool nos copos baços.

24.4.14

leonor

és uma pedra de enxofre que assenta na mesa onde
comemos almoços e jantares e os teus cabelos tocando
nos alimentos, emprenhando-os, "voltai aos fornos e
aos fogões de onde viestes, tendes dentro de vós a
progénie dos meus olhos, dos meus dedos esguios, dentro
de quinze anos haveis de parir titânides inférteis."
e tocas piano como um animal doente de cio e de
noite, dizes "titânides", só dás titânides onde tocas,
a pedra dos teus lábios tantos anos depois, "isto
sobrou" - colocas os joelhos no chão, onde haja relva e
plantas, apontas a púbis e sorris e informas "relva e
plantas, água." já se foram embora tantos anos,
não há gavetas com as tuas meias e cuecas em
minha casa e devia haver.
parimos titânides, deuses ancestrais, mentiras mitológicas
do que nos convencemos ser amor. estavas coberta
de água do mar e ainda assim tocavas piano,
cansada, farta, "não sei fazer arte, não me peças
como." falavas uma pedra de tabaco, eu era um
neófito, um albatroz cego, cheio de fome de espinhas,
berrando "relva e plantas, água", sem emprenhar titânides.

9.4.14

mulher de enxofre

baixei o tampo da sanita no fim de mijar e cheirava a
frutos secos e a café, embora na qualidade imprecisa e vaga
do meu nariz-e-olhos constipado só me cheirasse a tabaco
com muco e vinho tinto. fui-me embora e não avisei porque
mais do que tu num quarto esperando, deus estava no
silêncio e nos caules destruídos e era para lá que devia
dirigir-me, era nesse lugar de loiça sanitária que era
suposto estar. e estive. horas. com o calor do enxofre
como ovos estragados vergastando a cara, à espera de
deus enquanto os homens me davam cigarros e me
fodiam dentro dos olhos.
deus não é para ser procurado assim mas procurei-o ainda
nas banheiras abandonadas por detrás do hospital termal.
uma pessoa podia morrer ali e ninguém dava conta.

cigarro húmido

tão injusto nunca ter falado com a minha mãe num
poema onde me proteja do metal em brasa do mundo,
um poema onde me mande dinheiro num envelope,
"toma, eis o amor como os olhos de um peixe
no meio das lascas de gelo, nos supermercados."
a minha mãe com tantos segredos no útero cansado,
com as mãos fechadas, doentes, e os miúdos loucos
como ovelhas chamando-a no páteo. eis o amor como
flores horríveis, dentro de jarras sem água.

se porventura agora

dentro da constipação sabe mal o tabaco na boca
mas nunca nos pulmões
alcatrão pela traqueia adentro
tungsténio queimando os brônquios.

6.4.14

cómoda de Danae

tenho umas calças de pijama que uso quando estou doente.

dito isto, está completo, o poema, porque era o que tinha a
dizer. é um verso e tem uma história inteira na semântica e
na sintaxe da sua duração, creio que o possível leitor imagine
as suas próprias histórias, que sintonize a sua própria verdade
apenas com o verso

tenho umas calças de pijama que uso quando estou doente.

a poesia não é não-ficção, ainda que nas livrarias a ponham
ali ao lado dos livros técnicos de hortofloricultura, de matemática,
dos enormes tratados biográficos e dos cansativos livros de
história e de alquimia. a poesia é uma ficção, "tenho umas calças
de pijama que uso quando estou doente" é parte de um conto
sempre inacabado, o sujeito poético uma personagem que
tem umas calças de pijama, usa-as quando está doente, há
inúmeras formas de se estar doente, e o poema de um verso
espera que o leitor possível as pense, quando lê. a não-ficção
é aborrecida porque é só

o que é

o que as palavras dizem

mas a poesia que não aponta nem apresenta respostas é
uma ficção de cada um.

31.3.14

necrose

fabricar um sabonete com que lavar as partes pudendas,
montá-lo em casa, no bidet, que palavrinha imbecil.
mastigar glicerina, há certas comodidades domésticas que
não são para ir para a boca - o sabonete é para as
mãos, para os pés, para as partes pudendas, não convém
que cheirem ou que saibam mal (por vezes as partes
pudendas são para estar na boca, numa intimidade esquisita
que infunde medo, um chá de medo, uma infusão na
intimidade).
ferve-se a glicerina, vê-se nos filmes franceses como
construir sabão em casa, panelas grotescas, o estanho e o
alumínio todos sujos de uma gordura, por fora, nos
fogões a lenha, o trabalho todo, o suplício todo da
gordura purificada ao lume só para lavar o rosto,
tê-lo perfumado e pronto para a eventualidade remota
de oferecerem beijos ao jeito de intimidade
com ou sem
o sexo na boca.

máquina de lavar roupa #4

a beleza é um homem a falar francês ao telefone
no início de tarde, não entendo nada do que diz,
preocupa-se, move-se, fala, leva as mãos à cara,
eu só sei que cauchemar é pesadelo mas ele
não fala de pesadelos, fala de coisas que angustiam o
interlocutor a dizer e a ouvir francês, do outro lado.

30.3.14

relâmpagos: tangente

escrevi um caranguejo na areia no meio das tábuas
podres e das redes de pesca em decomposição e ele
brilhava no escuro da alma e caminhava de lado
na destruição, triste e com medo e eu quis
protegê-lo mas tinha as mãos cheias de buracos
e como ele fugia da civilização desapareceu na
água como quem se baptiza.

retroactivos

ele tem uma espingarda carregada nas mãos e corre
pelas ruas, esqueceu-se de comprar peixe para grelhar,
e chora, com todos os êmbolos que o deviam manter
em equilíbrio a funcionar mal, tem uma nuvem
sobre a cabeça, é roxa, ele pensa numa nuvem
roxa e vai levando isso pelas ruas, tem os pulmões
a respirar azoto, hélio, cianeto, ele está a dormir
correndo, ele tem uma mulher morta numa divisão
da casa, assassinou-a, às vezes é melhor assim,
pensa, correndo com uma nuvem roxa cada vez maior,
ele tem medo, tem fome, tem o sabugo nas unhas
doendo como um gémeo siamês que lhe tenham roubado,
ele tem sangue no nariz e nos ouvidos e magoa-o
o ruído, o lamento ruidoso dos passos arrastados dos
velhos no parque, pessoas que perderam tudo ou que
se calhar nunca tiveram nada a perder desde o início.

20.3.14

1899

não havendo macieira seja então um constantino
à porta da tasca onde sei que os homens se
congregam nessa comunhão de vinho porque
tantos filtros de cigarros na calçada - tive cuidado
com a aliteração, menos agora.

tenho a alma nas mãos como sempre a despachar
um copo de constantino mais que meio porque
não quis troco de um euro
e ninguém a quem a dar está-se a consumir
sem propósito com o álcool nas tardes de
fim de inverno
e as beatas dos outros no chão.

19.3.14

aniversário

meu pai tão velho, idoso, já não a mesma muralha dos meus
seis anos, ainda capaz na doença no entanto de ser meu pai.

13.3.14

tabuleiro: proxeneta

onde foi um quartel dos bombeiros e depois um armazém
é agora uma casa de putas e à porta uma mulher
de cabelo asqueroso, oxigenado, com as raízes a
sobressair no fulcro do amarelo-branco, um alcatrão
no percurso da cabeça, uma verdade de nojo na luz
falsa do resto, descasca uma maçã encarnada e olha
os pombos com a precaução de quem ganhou o
dinheiro para o fruto, ela tem a propriedade do
fruto, embora o debulhe com a navalha e dispense
a pele e os caroços - empecilhos alimentares que podem
ficar para os pássaros. tem as pernas abertas
porque vale mais que um homem e sabe-o, a um
nível básico sabe que vale mais que os homens,
pode escarrar e assoar-se no vidro da idade porque
os homens precisaram daquilo que tem e eles não,
por uns contos de réis. escurece onde foi o quartel
menos o branco-amarelo do cabelo e o pêro debulhado
e os pombos, que são putas aéreas sem se
preocuparem com o egipto ou com o japão ou com
as putas, roubando os cascabulhos, fugindo, as
pernas escancaradas da puta não lhes dizem nada,
são alheios a isso, despejando só as tripas no céu.

francophonie

les monstres

ela é um herói de banda desenhada dos anos
oitenta nos braços e nas pernas e sobretudo nas
mamas e no cu.

l'ordinateur

ela parte os dentes dos homens que a amam com um
garfo e bate-lhes nos testículos com uma colher mas
oferece-lhes as primícias da vulva e da boca também.

le cauchemar

ela beija primeiro com os olhos e só depois com a boca
e com a língua e com os dentes sôfrega de esmalte
a sonhar com mulheres nuas cuja alma se bebe nos beijos.

les chapeaux

ela lava ela enxagua entre as pernas tem ali um amor
tem ali uma música tem ali um exército de querubins
a chorar leite e mel e toca-se e fecha os olhos.

ana

na casa que não temos estás junto ao televisor e
convém dizer que as tuas omoplatas são um
terreno onde se podem plantar fios de pesca, onde
lavrar poemas pendurados de luzes (talvez
prefiras "luminárias", lanternas, complicações de côr?).
numa caixa de sapatos guardamos
a) três bichos-de-conta
b) duas marias-café
c) duas lagartixas
está tudo nas tuas omoplatas, no teu rosto calmo
oferecendo um sangue, perguntas e escuto ou
finjo (menstruação?). o meu caminho é uma
lâmina de possibilidades cerâmicas, é um silvado
que se apara a custo com unhas e dentes. na
casa fazes perguntas, as costas metaforicamente
nuas, nua és uma substância ideológica indescritível,
és um trabalho de roseiras e de silvas espessas
que dão amoras. planto fios de pesca nas tuas
costas para depois colher nylon, vendê-lo-emos
em armazéns devolutos, roxos de asfixia, montamos
eclipses solares, fazemos resumos de clássicos
literários e tu ris e pronto, és um violoncelo
em erupção na boca. és uma saliva de café e é
mesmo triste que esta casa não exista, que se
resuma a uma caixa de sapatos com sete bichos
dentro e uma cassete onde gravaste o tabaco e
uma folha de um legume, onde cantaste blues noutro
século, um que não podemos prender nos fios de pesca.

12.3.14

ruínas

por entre as traves de madeira,
no chão, um telefone velho,
desligado, silencioso, e ao
fundo a balança antiga, rente
à parede, sobre si os reflexos
opacos dos homens movendo
pesos numa barra graduada
de metal, pesando batatas.
nos destroços do tecto não
caminha ninguém, não há
ninguém. ninguém pode
funcionar como pronome
indefinido, concordemos,
não é um bom substantivo,
no entanto. ninguém não
tem substância, é um nome
que define uma respiração
num lugar vazio, uma forma
onde não há espaço onde
tactear um corpo. este
telefone não recebe nem
faz chamadas, é um altar
nos escombros, um sacrário
para que ninguém possa
dirigir orações a quem, de
direito.

11.3.14

quarto 116

a) van zeller, paciente #1

a psicologia prende-o ali, a psicologia, essa besta, esse
animal tão terno, sem dentes, as gengivas tentando
trincar, prensar o coração. a psicologia são
livros apontando, são dedos que dizem "eu ajudo",
e está ali na divisão, na matemática, com os
lápis-de-côr e uma melódica porque a música é
terapêutica, a arte aponta com os dedos mascarrados
de azul (mascarrado é preto, nota isso, ou uma
variação espectral dentro dessa). ele sorri, ele sabe,
ele viu e tocou no coração das coisas com a
língua, mordeu com os dentes, a psicologia é
um lustre decorativo cheio de pó.

b) rodriguez, paciente #2

no jardim chamam-me pelo apelido, sou um militar
da loucura, defendo-a, milito-a, sou seu militante, luto
por ela, os meus dentes estão podres, amoleceram
(podia dizer que roí sóis de verdade, sou louco,
dêem-me um desconto, m dava-me descontos,
deixava que a fodesse, que lhe apertasse as mamas
enormes, descontava-me o sexo, a língua)
dos medicamentos, do resto de tabaco que me dispensam
como se chegasse - rio-me, não chega, é óbvio que
não chega nunca -, dizem o meu nome, finjo que
não ouço, que não o reconheço, a psicologia aponta-me
e deixa-me ser uma mão que não toca a púbis.

4.3.14

na compra de 5 caixas ou mais

a minha existência é atestada pelas cartas do banco. essas vão ainda chegando
no correio, atrasadas, com prazos de dez dias que já só são três, mas vão
sabendo o caminho da minha casa, do meu corpo, trazem-me uma espécie
de literatura com números, percentagens, lucros, débitos, ameaças educadas
e propostas de penhora sobre o nada que tenho em meu nome. eu existo
pois o banco ainda vai sabendo que é aqui que estou. com as chaves da
porta completamente desnecessárias na presilha das calças, como aos onze
anos, a querer dormir sentado na cama como se o tempo me cobrisse e
me desse a calma e a intemporalidade de uma figura de pedra, inexistente
mas concreta, dentro do útero de tijolo e tinta da minha casa. não tenho
absolutamente nada a que o meu nome se associe, nada que o banco
me leve, o banco não quer saber cá de poesias, a poesia não me paga
as contas e eu também não, portanto as cartas do banco vêm com as
ameaças sempre muito civilizadas a seguir aos números e aos factos --
são importantes, os factos
--, ameaças de me levarem as coisas que não tenho, as coisas que
deveria ter, que todos têm. o banco não se rala com a poesia e nem
tem por que o fazer, a poesia não paga contas e eu também não,
a poesia não me paga arroz nem queijo nem a luz nem o gás nem o
tabaco (falta-me tanto o tabaco); vou bebendo água da torneira e sabe
a musgo e a pedras, vem do poço sob a casa, sabe a caracóis e a lesmas,
a centopeias e a bichos-de-conta que na escuridão debaixo da casa
se alimentam e crescem e morrem dentro da água. a poesia não me
paga garrafas de água, mas antes de puxar o autoclismo a água
da torneira é tão amarela quanto a das garrafas.

uma náusea de vidro

quando me voltar para trás e olhar para aquilo que, enfim,
fica para trás (coisas horríveis, angústia, arrependimento,
culpa), tornar-me-ei numa estátua de sal como a esposa
de Lot, o meu esposo e as minhas filhas a seguir em frente
numa tapeçaria e num baixo-relevo, eu com uma touca,
parada, eterna, para sempre atenta à destruição de
sodoma de gomorra
tão triste, tão incomodada com o facto de desaparecerem
assim da história do mundo, e ter de as contemplar
onde estiveram fundadas, ainda que já nada, delas,
ali reste. saber que é por minha culpa que arderam
no enxofre da fúria divina, não poder sequer
chorá-las, ser só um pilar de sal, estático, perene,
o meu esposo e as minhas filhas tão longe, não
vale a pena chorar pessoas assim, fazemos o luto
mais tarde, ela agora é uma estátua de sal no deserto,
quem a mandou voltar-se para trás e olhar para aquilo
que, enfim, fica para trás? é coisa de gente fraca, não
se pode perder tempo com culpas, é um desperdício.
em gomorra os olhos nas sombras chorando enquanto
o fogo lambendo os corpos desfigurados, sou uma
estátua de sal e não choro, não posso, mas seria
bom poder fazê-lo ocasionalmente.

19.2.14

para a nova carne

as pessoas na rua evitam-na, o carrinho de bebé vazio e
velho, com as rodas desalinhadas e perras, a levá-la
numa viagem estranha, falando para o nada dentro das
mantas e do lixo, com um garfo cravado no pescoço e
a aspergir sangue doente para cima das pedras e dos
animais mas não das pessoas - as pessoas são inteligentes,
evitam, fogem desses baptismos horríveis, lavam
as mãos com desinfectante e
no fim de cagar poupam as florestas e enxaguam
o cu no bidé com aguinha morna e sabonete.

ode a um relógio despertador

i) analógico

tirar um curso de jardinagem em três meses - coisas
práticas. é relevante aprender a distinguir um cedro
de um cipreste, uma violeta de um amor-perfeito.
dominar o ofício de manusear tesouras com
minúcia, estar inteirado das especificidades sazonais,
não confundir uma orquídea com uma vulva,
saber que as orquídeas não se comem, não
são para pôr na boca.

ii) digital

coçar a virilha, sim, mas não em vão, sempre
com cuidado, atentando, tacteando - o tacto apurado -
os poros, notando, sabendo onde e como e o
quê. não arrancar as carraças só assim; não é
desse modo grotesco que se faz: as carraças são
esfinges, grifos, há uma mitologia que lhes é
adjacente. "ao removeres uma carraça, unta tua pele
com éter ou álcool, só então se torna possível tirá-la em
completa segurança. ao removeres uma carraça,
aproxima de seu corpo redondo de hemoglobina uma
fonte fosforescente, também ela pulsante, que a
queime onde seja o posterior de si, e libertar-se-à
por si só, pois teme de morte o fogo contra o
abdómen." quando coçares a virilha e te deparares com
com uma carraça, sabe que são aracnídeos carnívoros
e não se comem, não são próprias para pôr na boca.

dividimos a conta?

"recordas-te do narciso, aquele que caiu num poço e
morreu afogado, a água a saber a mentol durante
seis meses, dos rebuçados que levava nas aligibeiras e
que se dissolveram na água? do sabão na água
mentolada, o corpo a desaparecer e por milagres
químicos, na água, a tornar-se num produto de
ph mais ácido?"
recordo-me dos pianos no funeral, do caixão
simbólico, uma caixa de madeira escura, onde
cabia um par de sapatos, com uma fotografia
em cima -- o narciso era violentamente um bigode
de azeviche (nem sei o que seja azeviche).
recordo-me de ouvir rock dos anos 60, na rádio,
nessa noite, e do tabaco mentolado me saber a
sabonete rente às amígdalas.

18.2.14

Αικατερίνη

os dicionários não estão convencidos da origem etimológica do
teu nome. os dicionários são autoridades, têm doutas figuras a
segurar-lhes a estrutura -- são uma estrutura, um andaime. existem
umas explicações, só que os dicionários exigem provas concretas,
photos or it didn't happen.

mas, olha: faço isto. atento e preocupo-me a acarinho. noto
que não entendo muito sobre o tempo, já só tenho
dois pares de sapatos, figurativa e concretamente, e
no tempo e no espaço peço-lhes uma utilidade
muito prática: cuidem-me dos pés, nunca
aprendi a caminhar de modo ligeiro sobre o solo.
os sapatos são só objectos, são um substantivo, há
uma substância muito peculiar do que é ser um
sapato, mas não está capaz de mais do que isso --
é  um sapato. o estupor do dicionário tem
a certeza absoluta e incontestável de que um sapato
é um sapato, não há nada que lhe possa pedir, eles
resguardam-me os pés e cuidam deles para que se não
firam nos acidentes do chão. o dicionário não sabe de ti,
é inútil no que diz respeito a isso. diz-me que há umas
santas da igreja a partilhar o teu nome e portanto vem
de um adjectivo grego que se traduz como "puro". em
arménio, outra hipótese sugerida, uma palavra possível
pode ser traduzida como "cume/zénite", adicionando
um elemento grego macarrónico poderia ser qualquer
coisa como "ela é o zénite". repara: estava a falar de
sapatos mas não deixei de falar de ti. os meus sapatos
velhos -- dois pares, só -- custam-me na dimensão
reduzida da concretude a que o dicionário os relega.
se lhes pedisse e o cumprissem, levar-me-iam para
onde estás, de modo a que te dissesse que não te
quero pura nem te quero o cume de nada. chegas-me
no que és, ainda que a autoridade dos dicionários
não o saiba. levassem-me os dois pares de
sapatos velhos que tenho, teria um pomar de lábios
incandescentes pelas tuas pernas acima, uma
redoma de silêncio púrpura para guardar quando
a tua voz existe no tabaco. os sapatos têm onde dormir
mas ao resto da substância de mim faltas-me
como um apêndice de mãos de sangue de electricidade
de saliva. sou um animal sem memória e preciso da
autoridade, da certeza absoluta dos dicionários, essas
estruturas, mas no vácuo tenho-te guardada, nem
pura nem zénite de coisa nenhuma, só lábios e braços
e pele e quente. choro a febre e o reumático dos
sapatos -- são só isso, sapatos. não me podem
guardar de nada. não me guardam. sou um animal
sem memória mas ao contrário dos sapatos carrego-te
na minha substância. posso guardar-te e estou a fazê-lo.

10.2.14

já é dia dez

deixas o teu poeta preferido morrer à fome porque o que
a alma come não alimenta o estômago ou os intestinos. e
falas aos teus amigos do teu poeta, é fácil imaginar só
a sua vida à distância, a percepção, os arquétipos,
guardar o poeta neles todos, calcular os seus passos,
os escarros de muco à noite e de manhã, as pernas
magras e a barriga de cerveja. mas ao poeta interessa-lhe
comer, interessa-lhe ter leite fresco, laranjas num saco,
das doces. interessa-lhe que a solidão passe, que a luz
não falte quando a tempestade abala os postes eléctricos.

7.2.14

newton e as teorias

i)

não nos morreu o gato, nunca se iniciou como
nosso. morreu-nos o piano velho, matou-o a
humidade, na sala. matou-o devagar, com paciência.
não se queixou, não se lamentou. morreu, só,
tornou-se mais humidade que madeira. a humidade
destruiu-o como um cancro meteorológico. ao
gato foi um problema nos rins, mas não
chorámos por ele, fomos como pianos assassinados
pela humidade, deixámos de saber como.

ii)

a nova marca de azeite na frigideira com dois
ovos e os olhos aquáticos do cão pequeno e
ridículo perto do fogão. seria fácil cegá-lo com
o azeite a ferver. queimar-lhe a humidade.

concertina

abro os olhos (dois milímetros, cinco) para ver
coisas, mulheres, para ver que a minha poesia não
sabe nada, não tem noção de como falar, do
que dizer. a poesia é uma outra coisa, escrever
só porque se escreve não adianta de muito, abrir
os olhos para chorar, para pedir bolos na pastelaria,
pastéis de nata, palmiers, ficar sentado ao pé
da livraria com uma esperança ínfima de não
ser indiferente à empregada bonita que vende
livros (vendeu-me um Kafka). a existência cansa,
por isso é melhor que se escreva, que se chore
de um modo mais metafórico, com um café a
arrefecer numa chávena; é preferível encher a vida
de mentiras e de sistemas propícios à sobrevivência:
fazer planos de um curso prático de cozinha,
aprender electrotecnia por correspondência. fingir que
se teve coragem de se dizer à empregada da
livraria que o nosso par de mãos a cheirar a
tabaco está disponível para ela, que os trocos de
que dispomos, ainda, dão para lhe pagar um
café. inventar que faltámos à catequese, às quartas,
que perseguimos répteis nas margens dos rios, que
nunca roubámos dinheiro para comprar casacos.
abro dois milímetros (de dois a cinco) de olhos, de
pálpebras, para olhar para isto, para notar o movimento
dos dedos à procura de palavras sem importância nenhuma,
juntando agramaticalmente tudo e lendo alto a
amigas, depois, na esperança de que chegue para foder.

20.1.14

as moças nos cafés são simpáticas por profissão

vou-me deitar uma vez que a vida é também
termos que nos deitar, às vezes. há estatísticas
do tempo médio que se passa a dormir. há
estatísticas para tudo e para o sono também.
a minha voz é uma estatística e o meu coração,
outra. e estou à beira de um rio cuja corrente
esverdeada corre depressa e o meu coração,
de uma forma pouco científica e logística,
tem o peso suficiente para se ancorar no
fundo, com o resto do corpo preso à sua
volta, os cabelos e os olhos de família a
fugir na direcção da água e na cama a estatística
só me diz que durma, que feche as persianas
e acondicione os objectos de porcelana nos
seus armários, pois a água que se avizinha
quebrá-los-á, de contrário. a ciência diz-me
que me preocupe com as coisas frágeis dentro
das caixas -- este lado para cima: FRÁGIL --,
diz-me que me preocupe com o meu crânio
pois lá dentro tem a porcelana dos olhos
e da língua e dos dentes. durmo com as mãos
cobrindo a boca ao jeito de quem protege
os dentes de pedras. o coração afunda-se
devagar na água e arrasta o corpo consigo.
a ponta dos dedos engelha na profundidade
aquática. há uma estatística para as horas de sono.