24.6.15

5:45

o aspersor abre-se ruidoso
como uma flor de água
cancerosa e parada
um olho

mamã

um olho como o
do cu

rodando sobre si mesmo
como uma cama de
incesto eléctrico
um cancro
mãe
um cancro de paus
batendo no sotaque
do sono
na luz da solidão

está escuro e ouço a água
rodopiando na relva
e corro como um cão
na relva
à procura da água
do cancro
de uma flor aberta
no olho
do cu
com que morrer lentamente
com que fechar a porta
do poema
e deixar só um tapete a dizer
bem vindo
para quem quiser ou
precisar
de limpar os pés a seguir

porque temos de limpar
os pés no fim de andar
na rua e entrar
em casa

23.6.15

é necessário que uma casa seja uma casa
e não uma imagem de uma casa ou um
poema de uma casa

que uma parede seja uma parede
que uma verdade
não sejam
só palavras
e mentira pelo
meio

11.6.15

pavão

trago a areia na roupa
na pele
sou um hipopótamo
gordo e cansado
e velho

tão velho

chorando líquenes
para cima da margem de um rio
seco
na televisão
apagada dentro
de um desses
documentários
de domingo
em tua casa

nome

a minha boca ardendo de uma comichão, uma tensão,
uma tesão,
uma piça dura, invisível, indizível,
os meus olhos arando terrenos vastos, as raparigas correndo
na rua à noite,
vou só deixar-te aqui uma carta na caixa do correio
rindo à noite e tudo tão afastado das coisas que fazem
sentido,
os meus dedos morrendo, dobro-os, olho as unhas, os lados,
está tudo amarelo, castanho, manchas pelos dedos fora
como os dedos dos mendigos que apanham beatas do chão
e do lixo e as raparigas rindo, fugindo, o sangue dentro delas
mas eu já com nenhuma que sangre, já não posso
querer nenhuma mesmo que sangre,
uma comichão, uma tensão na boca, entre os dentes, no
espaço dos dentes cariados, o ar muito pesado por entre
os dentes, a apertar, a laringe inchada ou só uma
impressão, um cálculo nervoso errado.
os meus olhos arando a boca presa aos dentes contra
o chão mole da fazenda dos meus antepassados,
quantos dos meus antepassados se terão suicidado quando
a vida lhes pesava e apertava o ar na boca?, quantos não
terão conseguido trabalhar a sobrevivência e
o conformismo, para quantos tudo subitamente pequeno demais
não chegou para tapar a solidão e os espinhos secos da angústia?

10.6.15

estamos à procura de chaleiras que fervam água com precisão; cansados do amor que magoa no orgânico de nós, a chorar de não haver, afinal, nada que seja um bocadinho mais mecânico, que não saibamos resguardar-nos melhor da loucura; estamos a ponderar a vida num hospital psiquiátrico, "talvez fosse melhor", embora depois nos apercebamos da saliva seca ao canto da boca anos a fio e o cérebro depois de uns meses só um barulho de nervos e de química, sabemos que as pessoas se vão esquecer de nós porque também nos esquecemos das pessoas; não nos esquecemos nunca de algumas pessoas que se esquecem de nós e nos abandonam em orfanatos de uma certa lama existencial, fecham à chave o egoísmo e levam de nós os lábios as pernas os braços o cheiro a pele o corpo. muito mais mecânicas que orgânicas, para quem as vê do nosso lado realmente a não quererem mais saber, distantes como fotografias de velhos mortos há cinco ou seis mil anos atrás, mas a doer mais, a doer imensamente mais, porque aos velhos nunca os conhecemos, nunca lhes tocámos, nunca nos tocaram a nós. estamos à procura de um fósforo que acenda a morbidez de um fogão a gás, que quente contra a ponta dos dedos nos sussurre "vai ficar tudo bem" para que nos possamos rir e saber "nunca vai ficar tudo bem porque o amor"

estamos à procura de estufar o coração com batatas e feijão-verde e água e colorau e louro e ervilhas e cenoura, sozinhos e com vergonha da nudez, com medo dos hospícios, do esquecimento, miosótis à beira da água a ferver num rio de gás, com o calor de um fósforo contra a cabeça dos dedos "vai ficar tudo bem"; uma escada apoiada numa estante, um vidro na planta do pé mas vai ficar tudo bem (não fica).

estamos vestidos com roupa suja e antiga, a mesma de há pelo menos doze anos

mothers in fiction

o sono não é uma asa que nos leve a um descanso
é só uma desculpa para que a dor não doa como
quando estamos acordados e os segundos têm de
ser assim com tudo isto
ao fim de tantos anos ainda têm tudo isto

uma vela tão perto do fim
mas a atrasar-se sempre demais

9.6.15

setenta

lamento, então, que na velocidade de viveres tenhas perdido noção de como
a alma se revolve na terra húmida, no calor, no papel, que dos meus olhos
não tenhas tirado nada porque são só olhos banais, castanhos, cansados.
que as minhas mãos violentas e às vezes violetas não te tenham chegado nas
feridas, não te tenham servido para levar comida à boca, para te segurar
no frio do inverno, pouco capazes, pouco masculinas. que a minha voz
se tenha tornado cansativa no seu tom monótono e monocórdico de quem
não afasta já uma rouquidão instalada no fundo da saliva. sob a doença há
ainda uma oferenda de aspectos luminosos a que te fechaste, a que não vais
querer mais chegar. existe um tupperware no real do teu frigorífico, maços
de tabaco vazios agora no lixo, mas no espaço do meu passado ainda a
ocuparem os seus lugares na tua sala de estar, um edredão por lavar a seco,
livros, um filme. lamento que nunca venhas ler-me, que não venhas saber-me,
que tenhas atirado tudo para um poço escuro de estatísticas e de irrelevâncias.
os meus olhos banais, cansados, destruídos, vermelhos do sono e do álcool
e do tabaco, da água do mar, só rebolando no vazio, a despropósito,
nus de sentido, secos, a mais valerem estar guardados numa caixa de chumbo
dentro de uma gaveta. lamento, pois, tão cada vez mais a sério, as décadas
onde caibo e onde me estraguei de amor errado, deslocado, lamento
o sol não ser um carro de fogo que me leve para um continente de outra
água mais certa, onde no encanto aceites as minhas mãos, ainda que na asfixia
e no frio às vezes violetas, às vezes violentas, e as trinques quando comeres
laranjas dos meus dedos.

3.6.15

guia prático para lancetar um quisto

existe um homem que todos os dias sobe a rua onde mora com um guarda-chuva
pendurado na parte de trás da gola da camisa. bate nos gatos com paus e pedras
e cospe no chão e veste sempre o mesmo par de calças castanhas. o homem é
feio e é mau, mas não é pior nem mais feio que todos os outros homens. existe
uma rapariga que todos os dias toma café de óculos escuros no café ao cimo da
rua onde o homem mora. lê revistas light e livros do Henry Miller e do Samuel
Beckett e do Carl Jung, fuma cigarros slim mas não light, como as revistas. o
homem sai de casa todos os dias com as mesmas calças e com a mesma violência
de paus, de pedras contra os gatos, a mesma sujidade de cuspir no chão quase
exactamente nos mesmos pontos precisos, aliterando a saliva na calçada, nos
passeios, na estrada e a rapariga só está no café já guardada todos os dias, também,
independentemente das fotografias que tira, nua, quando está sozinha em casa e que
depois mete em sites. o homem não sabe dessas fotografias e também não lhe interessa.
ama a rapariga e transfigura-se subitamente, interessa-se pelo Jung e pelo Miller embora
nunca tenha lido Miller, interessa-se pelos dedos finos de quem talvez toque piano
virando as páginas da revista light e pelos óculos escuros talvez grandes demais para o
rosto, e às vezes paga a meia de leite que a rapariga bebe todos os dias sem lhe dizer
nada. mas só é homem quando sobe ou desce a rua e fica sozinho consigo mesmo,
sem transfigurações e sem amor, só doente como todas as pessoas e irritado com
os gatos, com as pedras da calçada, sempre com o guarda-chuva ali ridículo e absurdo
pendurado na parte de trás da gola da camisa, a regressar para casa com vista a matar
a fome e provavelmente masturbar-se com a ideia da rapariga de óculos escuros no
café, alheio às fotografias dela nua, que seriam, a propósito do onanismo,
uma grande ajuda.