30.12.13

manual para não ter vícios

prendo as mãos - ato-as - à noite, quando me deito, para que
na urgência não me masturbe. obrigo-me a pensar nessas
coisas nobres que povoam a vida, os grandes vultos da
literatura não perderam a vida toda na inutilidade de falar
sempre de mulheres (ou homens); cresceram para fora disso, eis
por que são vultos.
menos aqueles que morreram cedo e hoje são analisados nos
círculos literários na possibilidade hipotética e quântica do
que a sua voz artística poderia ter vindo a ser.
mas a mim resta-me atar as mãos, que são pouco
nobres, à noite, e procuram a piça enquanto na cabeça
os rabos as mamas as pernas as conas as bocas húmidas
e entreabertas das mulheres que fui vendo ao longo do dia.

lêndeas e piolhos

em língua gestual no médio oriente
peço um copo de qualquer coisa para
beber desde que tenha mais de trinta
por cento de álcool. lembro-me de uma
amiga, longe, em espanha. não sei a
geografia das regiões, tenho uma amiga
que mora na parte de baixo de espanha.
preocupo-me com este poema, trato dele
como posso para que não seja uma repetição
dolorosa de outras coisas, penso em como
iniciá-lo mas agora já não vou a tempo
de o emendar, a minha amiga em espanha
provavelmente estará nua num quarto a
fumar um cigarro ao lado de um
homem qualquer que durante o dia vende
cartão e folhas de cartolina e papel de
cenário a alunos de artes visuais. há
o tempo necessário, ao menos, para que se
aprenda a pedir, no médio oriente, uma
bebida e outra palavra que, não sendo
"álcool", há-de ser alguma coisa que se
assemelhe a "vinho". com as mãos, não
com a boca. a boca guarda-se para
as pernas, para a cona longínqua da amiga
em espanha nua à janela enquanto um
homem cagando na casa de banho, à procura
de papel higiénico para não sujar de
castanho as cuecas e os lençóis.

melros para cortinas

os bolos de alfarroba que vieram do algarve eram para quem
gosta disso que é como quem diz passou demasiado tempo e estragaram-
-se na despensa dentro de uma caixa de metal para aqueles
bolos de manteiga noruegueses e bem vistas as coisas noruegueses
entre aspas claro dessas caixas que nas casas de tias
velhas de avós nessas casas escuras onde os cortinados
antigos sempre pesados e lúgubres vermelhos ou castanhos
servem de sítios onde arrumar agulhas linhas tesouras
dedais bocados de tecido às vezes.

endureceram na despensa os bolos de alfarroba que vieram
do algarve escapa à memória quem os trouxe ou a
cortesia que na altura certamente fez existir um obrigado.

29.12.13

obra reunida

ainda acredito
porque ainda
urge acreditar
que deve
haver (que
há) um
reembolso de
alguma espécie
para esta
imbecilidade da
vida quotidiana.

cera modeladora 7

vi um homem que gritava vi um homem
que se afogava e gritava na rua e os
outros homens ignoravam-no pois é
isso que se faz ignora-se as pessoas
que gritam e que se afogam
sair por cima ser a melhor pessoa
dar desprezo é tão melhor que gritar
porque

observei um homem que morria e
gritava e também não me movi na
sua direcção nem lhe estendi o
auxílio de um braço preferi ficar
sentado à espera da rapariga da
livraria com a hipocrisia da minha
dor pelo homem que se afogava
a achar que ao menos isso chega.

23.12.13

não gosto de romãs

ando com uma miúda da baixa,
embora - sejamos o mais francos possível -
as cidades pequenas, como esta,
não tenham sequer isso a que se
chama usualmente de "baixa".
e ela chupa-me enquanto vejo
os concursos da tarde na televisão,
chama-me "'môr" na casa de banho
enquanto mija de porta aberta.
compramos bibelots e sapatos, malas,
nunca um livro mas por vezes
jornais e revistas. não tem um
único disco em casa, mas toca
flauta e piano, embora nunca
me tenha sido oferecido constatá-lo.
em minha casa, na minha cama,
depois de me masturbar, com um
cigarro apagado nos beiços e um copo
de brandy vazio na mão, lembro-me
de chorar, lembro-me todos os
dias de lhe dizer no dia
seguinte que não a amo,
que não é semelhante às mulheres
(aos mitos) que amei a sério.
mas tenho ainda numa gaveta
aquela máquina depilatória para lhe
oferecer no natal.

20.12.13

paleontologia

passados dez anos matilde ainda escava na areia
um buraco com a paciência de criança
levando o balde ao mar e esvaziando-o
de cada vez. os homens vieram e partiram
e ela não notou na menstruação que
lhe ia fugindo nas ondas e nas rochas
no corpo que lhe cresceu -- em dez
anos o corpo muda -- nos seios nas
ancas agora quadris de mamífero
parideiro. contornando os esqueletos
fossilizados pelo caminho com cuidado
tentando apenas chegar um dia destes
ao núcleo da terra.

prosaica

são oito da noite -- vinte horas, oito PM -- e não consigo começar isto. não tenho como começar isto, embora tenha todo o tempo disponível para o fazer com qualidade, com estética: "pensa numa forma de iniciar este texto e fá-lo de maneira a que saiba a novo, não recorras sempre às mesmas imagens, deixa lá isso do amor, essa porra, essas lamechices, esses melodramas, esses circos. antes de mais, não te queixes tanto: tens uma vida maravilhosa defronte dos teus joelhos em peregrinação, há seis milhares de milhões (como é que porra é que se diz isso em português europeu padrão? biliões são o quê?) de pessoas no mundo, criaturas fascinantes prontas a ser descobertas, amadas, não há tempo para lamentar os desgostos, as fúrias, deixa-te dessas depressões insignificantes e vive a beleza da existência em harmonia com o teu irmão humano, o teu próximo, procura o deus das pequenas coisas, quando dormires, certifica-te de que tens os animais domésticos perto, um gato aos pés e outro na almofada, um cão por debaixo dos lençóis, contigo, aninhado naquilo a que vamos chamar 'o cavo das pernas'. não mintas, não finjas, emigra, move-te, mexe-te, labora pela tua felicidade, pois que a mereces!"

às oito da noite foi isto que consegui dizer, lembrando-me também do quanto me escapa a poesia, na verdade. o que domino não passam de imagens pequenas, desconexas, conceitos completamente despejados ao acaso, uma qualidade de desinteria emocional, mental, nunca construída num suporte de razão e de raciocínio. escapa-me a poesia pois a poesia tem de ser maiusculizada (A Poesia), há que se lhe dar e dedicar o verdadeiro valor, não ser preguiçoso e sobrecarregar o potencial leitor com o trabalho de descodificar sozinho uma coisa que nem para o autor faz sentido. isto para dizer que a poesia não é para homenzinhos heterossexuais sensíveis e lamechas, a época desses Artistas já passou, esse modo de cinismo orgulhoso com alguma sobranceria à mistura, os coitadinhos, os que bradam pelas mamãs, pelas vovós. não, este tempo, estes anos são dos verdadeiramente inteligentes, desde que se movam, dos que vão à bola, dos que percebem a matemática, a ciência, a engenharia, a medicina; os que decoraram os conceitos e os guardam numa estante metafórica junto do fígado, essas coisas são para estar nas vísceras, não nos pulmões ou no coração. a poesia é, afinal, dos que comem, dos que sofrem com estoicismo e nunca impingem ao seu semelhante o fardo dos seus problemas individuais -- que coisa tão minúscula, no oceano imenso da humanidade! que valor terá isso? nenhum.

deveria, pois, calar-me. ou exercitar a escrita de outra forma, isto é, trabalhá-la, usar de forma objectiva os dons e os carismas que a biologia e a evolução me proporcionam, não atirar o vocábulo "injunção" ou "transumância" para dentro do texto sem saber, ao certo e com legitimidade, quais os seus significados e significantes. ter ficado com pelo menos umas noções de teoria literária, pelo menos umas coisitas de linguística, uns conceitos de filosofia, sem ser só "não gostar de fenomenologia" ou "ser um discípulo da L=A=N=G=U=A=G=E school". deveria, pois, emigrar, deixar de procurar o amor, crescer -- é isso, crescer, amadurecer, decorar conceitos, amá-los, debitá-los, decantá-los, rezar-lhes como a um deus antropomórfico morrendo de reumático osteoporose hipertricose auricular. ir à bola com outros homens, ir ao estádio, ir ao café beber cerveja, assentar com uma mulherzinha normal numa vida normal com um emprego que me satisfaça economicamente e que me permita ter uma televisão em casa uma aparelhagem uma mesa e um fogão na cozinha pratos rasos e pratos de sopa e talheres e papel higiénico na casa de banho e água fria água quente gás luz aquecimento central um ou dois armários um cesto para a roupa uma máquina de lavar louça uma máquina de lavar roupa uma máquina de secar roupa cadeiras um secador de cabelo corta-unhas um cesto para revistas e revistas actualizadas um aquecedor a óleo um esquentador ou talvez uma caldeira eléctrica copos de vidro um açucareiro um saleiro uma garrafa de azeite uma banheira ou pelo menos um polibã e cortinas de banho toalhas de rosto toalhas de banho toalhas de mesa chinelos cintos uma fruteira meias cuecas pilhas AA preferencialmente recarregáveis uma mesa de cabeceira uma cama lâmpadas uma ou duas estantes um guarda-fatos tapetes napperons cortinas cortinados e tempo -- foda-se, ter tempo para aproveitar, para me deliciar com a mediocridade a que me releguei e que me oferece a poesia verdadeira, sincera, a poesia merecida de quem trabalha, de quem labora, de quem pensa com a lógica, de quem não desperdiça as palavras à toa. a poesia de quem pode, de quem consegue, não a poesiazinha de quem quer. perdoem-me o pretensiosimo das minúsuculas, perdoem-me o pretensiosimo da falta intencional de vírgulas, da intenção fácil de tentar construir a poesia (A Poesia) através de uma entediante lista de objectos quotidianos.

isto devia ter sido feito por um homem a sério, um homem rijo, um homem de sorriso aberto, sem merdas, sem lamechices, um homem capaz, que entenda que a vida não são só mulheres umas após as outras até que alguma, subitamente, "a certa" ("A Certa"), um homem pelo menos com o mínimo de subsistência económica, que vá à bola, que perceba da bola, que perceba de logística e sobretudo

que não se dê tanta importância a si mesmo no oceano da humanidade.

18.12.13

injunção #1

a casa de putas vazia ainda digere a púbis no
ruído dos passos dos miúdos ignorantes disso, só
a correr pelos corredores, pelas divisões, gritando,
fugindo. menos aqueles que na ponta dos dedos
procuram a reciprocidade do amor dos outros,
tacteando o ânus sob a roupa interior e notando
"é como o bolbo de uma flor ao fundo do
caule", na ignorância da semântica inexperiente,
desconhecendo, na verdade, o que seja sequer um
bolbo ou um caule, por essas palavras, com o
sangue invocado na pélvis a encher, a tornar rijos
os tecidos mais suaves como esponjas
debaixo de água num mar de sargaços.

prognatismo

o adereço, o artefacto, digamos, compunha-me;
era tão parte de mim como a pele ou os ossos.
houve um animal - uma besta - que morreu,
para que eu envergasse o adereço no pulso, à
vista de todos. "isto és tu?"
sim, isto sou eu, um animal morto, também,
com um custo, um preço, uma economia.
tenho tantas histórias alheias na sintaxe do
meu corpo e todas são mais relevantes que
qualquer cheiro que me tenham dado por momentos.

facto completo

vestíamos a nudez sem vergonha junto dos pêssegos e das
amoras e tocávamos na música do corpo um do outro
e falávamos e dizíamos
serpente e dizíamos
pele e escutávamos
as serpentes de pele e caminhávamos sobre a
superfície da água e sobre o fogo e queríamo-nos
mutuamente antes que a história nos destruísse as mãos.

14.12.13

carneiro

seguro nas mãos feridas do frio pós-apocalíptico
a carteira desbotada e gasta, ruça, do homem
quase morto na esquina. o dinheiro não vale nada
e em todo o lado há ruínas e incêndios, as sirenes
gritam avisos de bombas e no horizonte da
cidade as baterias anti-aéreas estão acordadas
contra as luzes. há gatos e cães que se alimentam
de braços, pernas, orelhas, olhos dos mortos empilhados
na praça, escombros indiferenciados dos outros
escombros feitos de cimento e pedra e ferro.
os candeeiros são como olhos intermitentes com
borboletas em vez de pestanas. tenho medo de falar
com estranhos enquanto fujo com a carteira roubada
a um homem meio morto que se sentava na própria
urina, encostado a um prédio desabitado. é isto que
vale alguma coisa: meia dúzia de papéis em bolsas
variadas, identificações, habilitações, fotografias de
pessoas que não sei quem são. uma vida inteira aqui
dentro, mais aqui dentro que dentro do casaco a
cheirar a mijo do homem a apagar-se como um
candeeiro, devagar, a cabeça pesando, caindo,
não é altura de falar de copos e de sorrisos e de
poesia, é altura de enterrar os mortos, de fugir
até casa com as carteiras e acender fogueiras
no chão com um fósforo, os documentos alheios
e algum combustível. aquecer as mãos, guardar
a carteira junto das outras, numa caixa de madeira
clara, os lados abaulados pela humidade e pelo vento.
lá em baixo os camiões do lixo vomitam a luz cor de
laranja contra as paredes e no horizonte as baterias
anti-aéreas decidem encetar a sua conversa de trovões
pós-modernos, com centenas de sóis fugindo pelo
céu acima, a correr para longe, tão longe desta loucura toda.

12.12.13

olho de gazela

há meses que enfim
há meses bons para
se morrer.
meses propícios
a que as mãos
se firam em plantas
com espinhos e
papéis.
"não conheço
pessoas que
morrem, só
pessoas que
conhecem
pessoas que
morrem". este
é o mês próprio.
dezembro é
o mês que me
cobre o
olho esquerdo
com uma moeda
de bronze. há
pessoas que são
como meses e
o inverso
também.

2.12.13

gama

o médico pergunta-me onde dói e não lhe sei responder. dói-
-me nas unhas, dói-me imenso nas unhas só que as unhas
são um tecido morto, não é suposto que doam, pois não?
é psicossomático. ou seja, é uma coisa da alma. convém
esclarecer que psiké é alma e não cabeça. a cabeça
não existe, apenas a alma, a fazer ruído com os papéis,
a dizer-me que o que dói são as unhas. sabia que
quando morrermos os cabelos e as unhas ainda crescerão
um pouco? é bonito, não é?, que as únicas coisas
mortas de nós ainda vivam depois de morrermos? nos
sonhos há um cavalo com a crina feita de gelo e
musgo e com os olhos pretos como se fossem feitos
de pedra vulcânica, baços, relincha como se o seu
organismo fosse metálico e esmaga-me o crânio com os
cascos. não sei onde me dói, nem sequer sei se há
alguma coisa errada comigo. urino e evacuo bem, com
regularidade, ando imenso tempo, sem me cansar, de vez
em quando constipo-me. gostava que os meus pulmões
subitamente se amarrotassem, sabe?, como os dedos da
alma fazem aos papéis. o tabaco está-me a fazer definhar
os pulmões, espero ter um cancro. não quero que me
tratem, a medicina moderna, permita-me que lho diga,
é uma imbecilidade. uma vez fiz uma lavagem ao
estômago e custou imenso, estive num corredor de
hospital com um tubo no nariz, sem me poder mover,
sem poder respirar, e sempre que abria os olhos
havia pessoas a morrer em todo o lado, com coisas
espetadas nas macas, que pareciam antenas. fale a minha
linguagem, se puder ser. fale com a língua.