29.3.13

rosto

é tão triste que numa semana todo o trabalho
toda a sobrevivência todos os planos
os amigos as vozes
tudo como madressilvas em gavetas abandonadas
de repente
e o céu da boca vítreo quando a masturbação
ter de pensar
tu
quando a masturbação que asco meu amor
ainda que asco que sobra de asco nenhuma
mulher és tu mais meu amor e quando a masturbação
tu
e isso entristece como entristece que numa
semana apenas todo o trabalho o labor de
sobreviver a ti deitado por água abaixo
pela pia abaixo e tu
tu
nunca vais ler isto porque ler é uma coisa
que se faz quando nos obrigam a estudar
agora somos adultos e crescidos inúteis
vazios portanto e não posso não devo sequer
mandar-te à puta que te pariu guardar-te
num saco de plástico com cascas de laranja
e pôr-te no lixo onde era suposto que estivesses
a barriga estúpida no prazo de uma semana
por causa do excesso de fritos e de desespero
já nada por que viver e com a barriga ainda
menos porque o meu valor meu amor é nulo
e nem deus me segura a mão no escuro porque
nem em deus acredito já só no amor
seja lá o que isso for acredito no amor
ainda que o amor esteja fechado muito longe
de mim e o veja da forma mais absurda e
imbecil de sempre como a barriga a impedir
porque a barriga tem impedido tanto no passado
que se apaixonem por mim mas mais que a barriga
o resto o invisível ainda que me arrependa ainda
que mude ainda que me torne
cada vez mais mulher que tu.

27.3.13

ralador de queijo

as palavras
os fonemas
os grafemas
que disse
que guardei
tinham
têm
em cada um
mais espaço
imagético
semântico
pragmático
que todas
as fotografias
que tiraste
e se a minha vida
são palavras
a minha vida
é melhor
maior
tem mais
espaço para
as coisas que
interessam
ainda que as
coisas que
interessam
tantas vezes
sejam as coisas
comuns
as coisas
vulgares
ordinárias
(nota que
quando as digo
isto é
quando as
ponho em
palavras
e as ordeno
e faço
aqui
uma quebra
de verso
a luz inominável
que se solta
delas
mais do que se
as aprisionasse
para sempre
numa das
tuas fotografias)
tenho os olhos
a rebentar
do ordinário
e é maravilhoso
mas em baixo
também
na boca
e nas mãos

doença em Santiago

"quero trair-te amanhã. convidar um destes homens
que passam na rua, recebê-lo em casa, deixá-lo
chamar-me de puta, de cabra, de vaca. olha, pedir,
mesmo, pedir que me chame nomes, que me foda
o cu, que me bata com força nas costas, nas
pernas, nas nádegas. estou cansada de ti, de
nós, de conversas e de cafés. de ter de tomar conta
de ti e de mim ao mesmo tempo. nesta cidade
estranha há-de haver um homem que me queira.
um homem a sério, não uma coisa como tu,
querido. amanhã vou trair-te quando saires para
ir ver museus, tomar cafés, apaixonares-te
pelas mulheres iguais a mim nos cafés. e não
te hás-de importar que te traia, não hás-de
querer saber, mas agora sabes. sabes que odeio
as tuas fodas lentas e carinhosas, a tua
meia-hora de minetes, a tua ineptidão física
quando me puxas o cabelo com os braços,
às vezes a incapacidade ridícula de pores a
pila na cona à primeira, odeio o teu olhar
de encanto, como se estivesses sempre a ver
o meu corpo pela primeira vez, o cigarro
irritante a brilhar no escuro, a descer pelo escuro
sempre que acabamos
de foder. não estou mais para isto, meu amor,
mereço melhor, mereço um homem, amanhã vou-te
trair e até gostava que levasses a mal, mas
sei que não queres saber, porque nunca falamos
de culpa mas a culpa, em ti, há-de ser sempre
minha."

3.3.13

cães

os miúdos têm dinheiro para câmaras
fotográficas aparentemente caras,
para óculos inúteis, sem graduação,
só emblemas de estilo perante os
outros. eu tenho trinta anos e
gosto dos cães velhos à beira da estrada,
à espera de coisa nenhuma,
enquanto lambem os colhões.