12.6.14

dos vícios

este é o tempo para partir espelhos, para louça feia nas
paredes, para actividades, para palavras menos capazes,
este é o tempo em que se vai a pé para casa e se
pensa, entre aspas, "ao menos há uma casa para onde
voltar", ainda que a casa para onde se volta seja só
um casulo muito remoto, um contexto de tijolos e
cimento e ferro e tubos de metal ao jeito de veias
e mofo e musgo e bolor e fungos ao jeito de uma
doença, um cancro. este é o tempo em que a casa
já não existe, foi-se embora nas mãos resolutas das
pessoas que ainda queremos, que ainda amamos, ainda
que no coração - na alma - que imaginamos na cabeça
nos tentemos convencer "amámos".
este é também o tempo em que nos falham os isqueiros,
em que as pessoas se esquecem dos nossos nomes. é
uma época para chorar, para nos esvairmos, desolados, em
lágrimas acres: eis que dói não saberem o nosso nome,
dói de um modo tão profundo, de uma maneira tão
incisiva. nesta hora plantámos patas de coelho nas fazendas
dos nossos avós e não germinou coisa nenhuma; o
nosso esforço foi em vão. na miséria das casas (não
lares, casas-somente) ainda lamentamos a louça feia
pendurada nas paredes, os espelhos partidos, as fotografias
por onde passaram décadas de pó e se foram esquecendo
sobre as cómodas, recordações falsas de pessoas e de
coelhos que foram acabando, que foram deixando de
ser viáveis biologicamente e se tornaram só louça
muito feia, memórias muito inúteis para encher poemas.