21.10.13

vector

um quadrado, dava-te um quadrado para que me
abraçasses e um abraço não custa, não tem preço,
mas alguns homens têm de oferecer dádivas a mulheres
como tu por um abraço. tenho para ti um
quadrado se me devolveres um abraço. (daqui
queria o teu pescoço onde ao fim do dia
a boca farta do tabaco e do álcool pudesse
recolher-se como um homem que volta a
casa no meio da chuva.)

3.10.13

fala de um pressuposto

as matérias suaves e moles temem as matérias rijas
i.e. os olhos temem os dentes sobretudo porque
e se
afiados que rasgam e arranham e arrancam
e demais aliterações.
em miúdos dizíamos que não era medo
era respeito
mas a verdade é que era medo
era um medo tão grande
nunca foi respeito por coisa
nenhuma
era medo só
e é
ainda
das memórias das desilusões e das ilusões
e da solidão e de que nos batam que nos
magoem
não é
nunca foi
respeito é medo
é muito medo enorme sem medida
nas vísceras nos rins nos intestinos
nos pulmões.

uma amiga

ouçamos o samba na rádio
falemos dos assuntos
da ignorância dos que
votam
do capitalismo
lavando a loiça com
luvas de borracha
quase objectos
sexuais engrossando
protegendo
os dedos. o volume
da rádio onde se
desloca o samba
"gosto de samba
faz falta o samba"
no meio dos legumes
do resto dos legumes
no ralo da pia
no meio dos assuntos
pungentes
da verdade só nossa
embora comum também
noutros apartamentos
contíguos
calculamos
da ignorância dos que
votam
do capitalismo
dos preços dos ordenados
"porque alguns de nós
nasceram e agora não
sabem o que fazer com
isto ninguém nos
ensinou mas também
ninguém ensinou ninguém
e afinal aprende-se"
afinal aprende-se mas
estamos mimados
com os ralos da pia
por onde descem os
restos dos legumes
e também o samba
já que o som ocupa
espaço
e empurra
estes corpos
não necessariamente
na direcção um do outro.

como comer sardinhas

dizem os entendidos nessas coisas que desde que haja
animais de estimação em grande número e desde que
se escreva que isso chega que a felicidade ou um
protótipo dela devem ser apenas isso. os entendidos
nessas coisas não percebem muito disso.

2.10.13

livros sobre a secretária que, não o sendo, é uma mesa-de-cabeceira

somos poucos, já. bebemos tinto pelos gargalos
das garrafas, fumamos, partimos os vidros contra
o chão. somos tão poucos, somos tão pouco. a
psicóloga disse-nos isto e aquilo (a psicologia é
coisa de mulheres, o Freud é coisa de mulheres e
isso não é bom nem é mau, é o que é, séculos
disto, séculos de secularismo, desta coisa tão
patriarcal e elas têm de se agarrar a alguma coisa
para além do que é o que se vê o que se toca
o que se sente) nada fez sentido absolutamente
nenhum porque a psicologia é um artifício assaz
insuficiente para a religião. já não chamo por deus
à noite e não choro porque os meus pais vão
morrer, no escuro, na cama, porque sou adulto
e pressupõe-se que agora deus está morto e
que os pais são artifícios insuficientes dos quais
precisamos de prescindir. não tenho, nem nas mãos
nem nos olhos, a capacidade para viver e não
me apetece sobreviver. apetece-me deus e apetece-me
segurar no colo a cabeça de alguém que me
diga que não vai a lado nenhum, nunca.

e o Freud pode explicar isso o que quiser.
prefiro o que diz o Kafka.