18.5.15

desumanização

que a casa nos caia então sobre as cabeças
e cada centímetro de nós esmagado sob as ruínas
arda sem voz, um palácio de ossos e de
oxigénio a ser consumido, não termos servido
nenhum propósito agora que as corças correm
tão distantes dentro das florestas escuras,
a única luz um par de olhos animais e
a casa derrubada sobre nós, incandescente,
um espaço onde fomos e tivemos mas
agora apenas uma gramática rudimentar
de memórias que não alimentam nenhuma
biologia que se possa conceber.

11.5.15

«My lament is still rebellious;/despite my groans, his hand is just as heavy.» Job 23:2

a rádio dá chuva, não tenho nenhuma mulher ao meu lado a quem possa pedir
"salva-me disto", procurar uma mãe, uma mão, um húmus em todas as
mulheres que me deixam vê-las nuas e tocar-lhes no meio das pernas com
o encanto de um neófito que fode pela primeira vez. tenho um par de meias
desirmanadas e uma delas desce-me abaixo do artelho, ocorre-me quão
feia é a palavra "artelho" e que existem partes no corpo tão mais hediondas
do que os artelhos, que mal fizeram, para merecer esse nome?

a rádio dá chuva quando devia dar um relato da bola, o vizinho de baixo vê
as notícias e eu só as ouço pela janela, com um par de meias desirmanadas,
uma em cada pé, os homens da meteorologia dão sol e calor enquanto a rádio
no ponto oposto da física, dá chuva, estática, chuva parada a mover-se num ruído
que roça o silêncio. que tempo fará do outro lado do mundo?

o vizinho de baixo tem dois cães e uma mulher a quem deve pedir que
o salve disto tudo, que nunca o esqueça, que lhe aqueça os pés à noite
na cama depois de comer um iogurte de côco e beber um chá verde ou uma
merda dessas. e ficam a ver programas de notícias até ficarem com sono.
duvido que o vizinho de baixo tenha ouvido a chuva estática na rádio,
duvido que alguma vez tenha precisado de ser salvo por alguma mulher
ou por alguma novidade meteorológica. é por isso que eu é que uso
meias desirmanadas (uma em cada pé) e lamento o vazio na cama
e noutros sítios mais distantes que ninguém sabe ao certo onde ficam.

9.5.15

La Carne (1991)

é imbecil viver a vida com a expectativa de encontrar a mulher
com as mamas mais bonitas do mundo e amá-la tanto que
sentimos não a merecer, ir para a praia em frente à casa e cortar
os pulsos e esperar, só para ela vir atrás de nós e, ajoelhados na
areia húmida rente ao mar, nos lamber o sangue dos braços
e nos levar de volta para dentro. o resto do filme pode ser
ridículo -- reconheço que é --, mas hei-de me lembrar sempre
dessa parte. ou do fim, em que o pianista a mata e a guarda
dentro do frigorífico, para a ir comendo ao longo dos anos,
tê-la dentro de si, porque a amava tanto que não conseguia
mais viver com ela, mas também lhe era impossível estar longe.
o mais triste é alguns de nós entenderem de facto isto.

4.5.15

ruanda

vem habitar para onde seja outubro, onde nenhum
musgo corrompa as estátuas nos jardins,

estenderemos uma toalha no chão e comeremos
pão, beberemos leite na fome, afugentaremos
o fantasma da fome,
o estigma

3.5.15

letissimulação

fui um rosto com lábios secos
fui um forno numa fábrica de tijolo abandonada
fui uma boca escancarada num faraó por mumificar
fui um cardo contra as pernas e a planta dos pés dos que me tocaram
fui uma estrela incessante no vácuo e apagaram-me
fui um dedo não preênsil tocando nos ramos das árvores queimadas
fui uma voz num corredor vazio
fui um navio embatendo no fundo do oceano
fui um bicho fingindo que dormia
fui uma corda de seda onde as senhoras magoaram os pulsos
fui uma mulher esperando pela menstruação
fui uma corça galopando no meio de um incêndio
fui uma floresta onde antes tinham sido casas

breathing smoke

tivémos um ciclo de tempo, uma mão-cheia de folhas secas,
vimos as unhas entardecer, passámos ao longe nas colinas
enquanto nas eiras as crianças vergastavam as sombras
com vides verdes; comemos um do outro, falámos a gramática
um do outro, fugimos da sombra nos dias de sol e conversámos
sobre o feno sobre as árvores sobre os livros e sobre amónia
de vez em quando. quando nos olhávamos eram essas as
palavras precisas, as nossas mãos uma na outra por dentro
da cidade, por dentro do tempo, mas o tempo nunca parou
como devia, nunca se compadeceu da nossa voz angustiada
pedindo esmola de coração e vísceras e pulmões e nervos.
amo-te como uma catedral serena, comungo-te apesar de
as aves migratórias, apesar de as coisas, de as dores;

quereria saber como pedir perdão como resolver os problemas matemáticos da alma
mas não sei e só me resta confiar-te as margens do meu corpo
da minha idade esperar que não as vergastes conforme o sol lhes aumenta as sombras
esperar que me guardes onde nunca seja escuro nunca seja frio onde o vento
nunca me desoriente os sentidos onde três ou quatro sóis me encandeiem e façam florescer
os dedos

guardei as folhas secas com que entardecemos neste tempo
e posso fazer-te um colchão onde dormir, posso fazer-te um
casaco que te proteja do frio, uma árvore, um brinquedo,
um prato de onde comerás o meu corpo inteiro.