28.4.14

ervas para pães ázimos

a minha mãe é um esqueleto conduzindo uma mota que
devia estar num museu
no méxico em estradas onde ninguém passa à excepção
dos mortos e dos velhos
pois os velhos são quase mortos já vestem a roupa
de quem come à mesa dos que faleceram já falam
essa língua silenciosa com a boca inchada de ar
escaravelhos terra água vermes
a minha mãe pára pelo caminho e cozinha tijolos
em fornos e diz
«construam fábricas e abandonem-nas passados oitenta
anos para que no futuro os vivos recordem as
vossas palavras e os vossos nomes.»
e a minha mãe come as raparigas bonitas no
pó e a mota devia estar num museu mas move-se
o motor ainda a empurra na doença e no amarelo
que não é a cor preferida da minha mãe mas
era a cor preferida da mãe da minha mãe e a
minha mãe escreve um poema de dentes de vermes
e procura a sua mãe que mesmo viva já via
o que os mortos vêem já escutava os mortos
quando o padrasto da minha mãe junto das margens
do rio tejo em cacilhas se acometia ou pelo menos
uma pequena percentagem de si uma âncora de
cobre enterrada no forno da mãe da minha mãe
para cozinhar tijolos de cancro de ossos de nervos
e a minha mãe nos cactos com um poncho sem
saber como beber o álcool nos copos baços.

24.4.14

leonor

és uma pedra de enxofre que assenta na mesa onde
comemos almoços e jantares e os teus cabelos tocando
nos alimentos, emprenhando-os, "voltai aos fornos e
aos fogões de onde viestes, tendes dentro de vós a
progénie dos meus olhos, dos meus dedos esguios, dentro
de quinze anos haveis de parir titânides inférteis."
e tocas piano como um animal doente de cio e de
noite, dizes "titânides", só dás titânides onde tocas,
a pedra dos teus lábios tantos anos depois, "isto
sobrou" - colocas os joelhos no chão, onde haja relva e
plantas, apontas a púbis e sorris e informas "relva e
plantas, água." já se foram embora tantos anos,
não há gavetas com as tuas meias e cuecas em
minha casa e devia haver.
parimos titânides, deuses ancestrais, mentiras mitológicas
do que nos convencemos ser amor. estavas coberta
de água do mar e ainda assim tocavas piano,
cansada, farta, "não sei fazer arte, não me peças
como." falavas uma pedra de tabaco, eu era um
neófito, um albatroz cego, cheio de fome de espinhas,
berrando "relva e plantas, água", sem emprenhar titânides.

9.4.14

mulher de enxofre

baixei o tampo da sanita no fim de mijar e cheirava a
frutos secos e a café, embora na qualidade imprecisa e vaga
do meu nariz-e-olhos constipado só me cheirasse a tabaco
com muco e vinho tinto. fui-me embora e não avisei porque
mais do que tu num quarto esperando, deus estava no
silêncio e nos caules destruídos e era para lá que devia
dirigir-me, era nesse lugar de loiça sanitária que era
suposto estar. e estive. horas. com o calor do enxofre
como ovos estragados vergastando a cara, à espera de
deus enquanto os homens me davam cigarros e me
fodiam dentro dos olhos.
deus não é para ser procurado assim mas procurei-o ainda
nas banheiras abandonadas por detrás do hospital termal.
uma pessoa podia morrer ali e ninguém dava conta.

cigarro húmido

tão injusto nunca ter falado com a minha mãe num
poema onde me proteja do metal em brasa do mundo,
um poema onde me mande dinheiro num envelope,
"toma, eis o amor como os olhos de um peixe
no meio das lascas de gelo, nos supermercados."
a minha mãe com tantos segredos no útero cansado,
com as mãos fechadas, doentes, e os miúdos loucos
como ovelhas chamando-a no páteo. eis o amor como
flores horríveis, dentro de jarras sem água.

se porventura agora

dentro da constipação sabe mal o tabaco na boca
mas nunca nos pulmões
alcatrão pela traqueia adentro
tungsténio queimando os brônquios.

6.4.14

cómoda de Danae

tenho umas calças de pijama que uso quando estou doente.

dito isto, está completo, o poema, porque era o que tinha a
dizer. é um verso e tem uma história inteira na semântica e
na sintaxe da sua duração, creio que o possível leitor imagine
as suas próprias histórias, que sintonize a sua própria verdade
apenas com o verso

tenho umas calças de pijama que uso quando estou doente.

a poesia não é não-ficção, ainda que nas livrarias a ponham
ali ao lado dos livros técnicos de hortofloricultura, de matemática,
dos enormes tratados biográficos e dos cansativos livros de
história e de alquimia. a poesia é uma ficção, "tenho umas calças
de pijama que uso quando estou doente" é parte de um conto
sempre inacabado, o sujeito poético uma personagem que
tem umas calças de pijama, usa-as quando está doente, há
inúmeras formas de se estar doente, e o poema de um verso
espera que o leitor possível as pense, quando lê. a não-ficção
é aborrecida porque é só

o que é

o que as palavras dizem

mas a poesia que não aponta nem apresenta respostas é
uma ficção de cada um.