31.1.13

se ao menos o onanismo

cansam
os
gatos
e os
cães
e as
pessoas
na rua
a
passear
os cães
com
ou
sem
trela
e os
casais
que passeiam
de mão
dada
com
ou sem
trela
com ou
sem
amor
e os carros
azuis
escuros
às voltas
na
rotunda
a não
darem
descanso
à ferida
como
uma língua
nas
gengivas
e os
gatos
esperam
em casa
ao fim do
dia
mas
isso
não
ajuda
nada

rigorosamente.

30.1.13

hexágonos #1

a minha idade ilumina uma época
por dentro. uma cabeça inteira feita
de frigoríficos, máquinas de lavar
roupa, caloríferos estragados e mãos
de estátuas de bronze esverdeadas,
dessas que os lagos cospem de manhã.

28.1.13

post-it

na quarta-feira, à noite, ainda quarta-
-feira, para nós, quinta, para o resto
do mundo saudável e capaz, a fumar cigarros
atrás de cigarros - um mistério,
a nicotina, à noite -, na solidão das
ruas ou na solidão maior de
nós, as almas desirmanadas,
mal arrumadas nos armários do
corpo, parados à porta da
residência universitária feminina,
a ver as pernas das estudantes
de arquitectura de design de teatro
as pernas bonitas a não pertencerem
a nenhuma mulher concreta, real,
só pernas, nuas, a acabar nas costas,
passando no corredor iluminado
a caminho da casa de banho
a caminho dos quartos
e no fim ou no princípio das
pernas uma ou outra cona, uma maldição,
diríamos, com os cigarros atrás dos
cigarros, flores atrás de flores, para
que seja mais bonito, mais
campestre, mais bucólico, flores
secas, enroladas em papel fino,
no meio dos lábios, uma cona das
caras, uma ferida inútil por onde
ao menos na quarta-feira ainda pode
entrar e sair tabaco (flores, fumo, morte),
nós, tão incapazes, tão destruídos, com
tanto negro nos pulmões, com tanto
desencanto nas unhas, com um ou outro
poema ao fim ou princípio das pernas,
a ver as pernas das estudantes universitárias,
a separar as pernas das estudantes universitárias,
que é isso que o mundo nos pede,
mesmo quando só queremos dar amor
e um abraço, mesmo quando somos
pessoas tristes que estão presas na solidão
assustadora das nossas próprias almas.

27.1.13

11

resta um nome no meio da lenha
queimada. um rosto, no incêndio que
foram as tuas pernas, as tuas costas,
o teu peito, o alimento dos teus
lábios.
o meu corpo há-de parar de funcionar
antes que o teu nome se acabe.

26.1.13

osso

porque um poema com a palavra
flanco
pode ser tão ou mais bonito
que um poema com a palavra
saudade,
mesmo que as saudades que se
sintam sejam de um flanco
alheio. se um poema disser
saudade, poderá também estar a dizer
flanco. este
está.

20.1.13

cesura

do silêncio ainda me falam e trazem dores
velhas, amigos com os olhos fechados e a
boca cheia de pó por dentro, os pés lentos
sem paz alguma nas plantas, os pulsos fracos,
os sinais de vida muito distantes, o cheiro do
carvão no nariz. a electricidade nas pernas
onde já nunca a tua cabeça, já não mais um
colo terno para a tua cabeça destruída da
vida e da guerra do amor e da psicologia,
onde dois peixes nadam à procura de alimento.
posso trazer um pão de dentro do silêncio e
parti-lo para alguns amigos, mas os seus
dentes já não servem e a tua cabeça já
não quer caber no meu colo, ainda que
as minhas pernas tenham uma electricidade
que te pertence até que seja um tempo
de fim das coisas.

16.1.13

tronco

respiro com dificuldade
para cima da água
quente
do vapor da água
quente. a ponta dos
dedos
está gelada e toca
nas coisas sem
sentir. a música
fecha-se sobre os
olhos de maneira
a parecer uma carta
sem destinatário.
o mundo podia ser
um lugar melhor.

15.1.13

#2

ela não bebe água da torneira
e espalha o brie no pão como se
fosse manteiga e o pão fica
tostado no forno eléctrico.
e eu como o pão com brie
mas não ouço as palavras -
não tenho de ouvir as
palavras - porque o ruído
de mastigar o pão tostado
se sobrepõe às palavras.
a dor sobrepõe-se às palavras,
às maçãs, às laranjas.
não consigo comer kiwis
nem puré de batata porque
vomito tudo. vomito tudo
sempre, até palavras.

Maria

dizer à minha avó
"amo-te"
enquanto ainda der.
telefonar-lhe,
estar com ela.
um de nós pode
desaparecer
entretanto.
não gostava de
deixar coisas
por dizer.

11.1.13

personalidade limítrofe

pouco a pouco
a rouquidão na
garganta avisa-me
de que o chão está
molhado no caminho
para o café. um
quarto
de hora de água
e de chão
de inverno.

10.1.13

Justerini & Brooks

no movie for us tonight. the taste of
liquor on the lips burns them. our lips
are wounded due to the cold and the
humidity. almost all great authors are
dead, now, only we remain, trying
our best not to be forgotten, drinking,
eating cheese, writing non stop bullshit.
this isn't the time for movies, it's getting
late in here. all great authors have been
dead for a long time, it's saddening.
our pain lies deeper than our ribs,
our heart, our lungs. closer to the
kidneys, actually, when they burn
after we drink too much, lips bleeding,
numb. what happened to us? there's
no answer to this question. it's thursday,
movies are opening in theatres all over,
but this is no night for movies, no
night for sad rendez-vous, we drag
ourselves through life, through nights
like this, we starve, there's no place for
us. our lips covered in scrapes. our
eyes are tired of air and humidity.

9.1.13

Mateus 18:22

S.

és uma flor frágil e selvagem
que tento guardar o melhor
que posso à vista de todos.
se tivesse nascido morto
não te podia dizer que te amo
e nem sequer sete vezes
mas setenta vezes sete.

dínamo

este sou eu. uma sombra de tabaco
pelos cantos, um miosótis espezinhado,
a escrever pequenos poemas
narcísicos
porque ninguém toma conta de mim
e a verdade é que nunca ninguém
tomou conta de mim nem nunca
ninguém vai tomar conta de mim
um bocado. eis-me, pois, com
livros e com amor à volta, tudo
a soltar-se dos poros, um vapor
de literatura amor egoísmo dor
por esta ou por outra ordem,
a pensar, a dormir, a sentir, a
viver numa sobrevivência
quotidiana. quando as pessoas
partem sem morrerem era mais
fácil que um de nós morresse e
sempre me pareceu mais fácil e
justo que essa pessoa fosse eu.

saudades de uma cafeteira de alumínio

as noites são
o pior. compostas
só de idas à
casa de banho,
viagens minúsculas
para urinar. as
noites nem deixam
que se descarregue
o autoclismo.
bebo água nas
noites e tapo-me com
os lençóis de flanela
mas o pior
são as noites.

8.1.13

bula

dizem que o amor aos trinta anos
é tardio. são aranhas, a partir dos
trinta anos, estão envelhecidos, até
um pouco mortos, inchados de
desilusão e de realidade. bebem
chás estranhos nos cafés. voltam
para casa. há sempre uma casa
para onde voltar. mas amar aos
trinta anos, dizem, sentir paixão
aos trinta anos de idade, é tardio.
vivem como crepúsculos perpétuos,
caso os crepúsculos fossem aborrecidos.

corta-relvas

espero que ainda haja tempo para um último cigarro,
antes do fim. que ainda dê para um último cigarro, ao
preço de agora, que já é alto o suficiente. espero que
ainda seja tempo para rever retratos, para nos sentarmos
na praia, ao fim da tarde. não se ouve ninguém na rua.
parece quase sempre tarde demais, mas no entanto
continuamos aqui para nada.

7.1.13

ortopedia

este poema devia ser uma fotografia, não
fora o facto de este poema já ser uma
fotografia, só que melhor. porque quem
olha para este poema pode ver todas
as fotografias que quiser ver e, desse
modo, este poema só não é uma fotografia
para quem não conseguir olhar para ele
e ver isso. não será culpa do poema,
porque, olhando bem, atrás das palavras
há imagens, dentro das palavras há imagens,
por isso este poema devia ser uma
fotografia e é.

o leite que profanámos coalhou

meu amor,
gostava de te
guardar
como uma serpente
que guardasse
um bicho de conta
ao sol
enrolados
um no outro
e em nós mesmos
tudo frio
mas o sol
no sangue
ou por fora
de um exoesqueleto
que nos proteja de todo
o mal do mundo
e dos outros.
e dar-te o meu
corpo sintonizado
com o mundo
real e pernas
que andem
braços que peguem
olhos que
vejam.
uma boca que fale
e que beije
com carinho
as omoplatas
as unhas
e unhas que nunca
morram
que aumentem
sob o solo
no fim.

breviário de teofanias

ficava sentado na sala do capítulo, sozinho,
com os ratos e os livros e com os ratos que
dentro de si já tinham livros, depois de tantos
dias a comer papel, lia os livros e os livros
só tinham morte lá dentro, pelo menos os
que importavam. eram muitos e cheios de morte
mas no entanto a morte nunca chegava, na
sala do capítulo, perdido no meio de corredores
e de um labirinto de outras salas com quadros
de paisagens e de rostos austeros que olhavam
por baixo das sobrancelhas pesadas com um
ar acusatório, do alto da sua beatitude. e
comia tinta e papel quando o pão não chegava,
havia muitos dias em que o pão ficava esquecido
e a água, o vinho, porque era complicado
chegar-se à sala do capítulo. lia poemas no
meio dos livros, mas eram poemas que falavam
baixinho de teorias e de lógicas esquisitas,
de flores secas, todos repletos de flores
amarelecidas, de gavetas fechadas à chave
e nenhuma chave que as abrisse. os poemas
nos livros eram como os livros, só moviam os
maxilares para dizer "morte", mas a morte não
vinha porque na vida há mais coisas que não
se metem nos poemas ou nos livros, e os poemas
ou os livros chegam e não chegam para que se
viva. mas os ratos não sabiam ler e por isso
viviam dos livros, e quando apareciam mortos
às vezes tinham pasta de papel mal digerida
a sair-lhes da boca.