30.4.15

(é irrelevante o que diz a voz, a boca,
tudo o que importa ser dito está nos dentes
cariados, nas nuvens de tabaco a fugir
das narinas, das unhas, dos dedos.)

hipocondria

este poema é o pior poema de sempre.
está nu, está oco, e o poema não se
quer oco nem nu, há um certo tipo de
folhagem que se tem de vestir a um
poema, um certo tipo de valor que
tem de se lhe dar. mas este poema não
tem rigorosamente nada, a não ser uma
teimosia muito funda que se confunde
quase com um sussurro de um filme
antigo desses que desapareceram
antes sequer de serem exibidos nos
cinemas e no entanto fala-se dele e
existe sem nunca ter sido visto.
o poema devia ao menos ter uma pessoa
dentro de si que o enchesse de analogias
e de metáforas e de, quanto mais
não fosse, ironia ou um oxímoro
ou dois. um poema que tivesse
sido pensado, prensado, todo ele
edificado em mármore, para as gerações
vindouras se deleitarem à sombra das
suas ameias, para se refugiarem no seu
interior. não se está bem dentro nem
perto deste poema; não é uma árvore
nem um prédio nem um animal nem
um carro, é um poema e nem sequer
um poema muito bom nisso. e se se
corta jorra sangue e o poema olha
e toca e lambe o sangue que lhe sai
do corpo e não entende como, não
entende porquê. um poema devia
ser como uma fazenda, como uma seara,
como um céu sem nuvens; se sangra, se
grita, se chora --

o poema tinha muito boas imagens na cabeça
mas não conseguiu encher-se, não conseguiu
povar-se de nenhuma delas.

14.4.15

olhos

é triste o século vinte e um na distância
ter de ver os bandos de aves migratórias
no céu a ir para longe e não serem eléctricos
serem ao invés orgânicos; o que é orgânico
é mais complicado de entender e quando
aberto causa asco e náusea no cheiro e
nas colorações; nenhuma ave migratória
pode levar gritos do coração até onde
quer que estejas e apesar de tudo o
coração guincha muito muito alto mas
ninguém ouve pois apesar de tudo é
orgânico; se pudesse seguir nas costas de
uma ave migratória em bando com as
outras até ao país de verão onde te
encontras incandescendente de pedaços
orgânicos no século, à distância
lamentavelmente
seria isso que faria até se calar nas tuas
mãos no meio da música eléctrica da
tua pele dos teus lábios do teu corpo não-
-triste; mas as aves chegam-te sozinhas e
não há meio de te enviar isto porque já
ninguém escreve sequer cartas.

13.4.15

espectógrafo

considerei que o sucesso é um prego ferrugento numa parede,
numa casa velha, onde os homens penduram casacos ao fim do dia.
o meu amigo chegou com alface para a salada, comemos
massa com carne frita, bebemos vinho branco porque se me
tinha acabado o tinto, com um certo humor triste fizemos pouco
da situação, "vinho branco é a coisa mais parecida com vinho,
que existe", mas despachámos a garrafa.
ouvimos música ligeira depois do jantar enquanto víamos
os carros e as pessoas, lá em baixo, sentados na varanda;
embora víssemos sempre mais os carros do que as pessoas,
os carros vêem-se melhor ao longe, anunciam-se melhor, num
movimento de luz e som e metal e plástico e vidro e borracha
a respirar poluição nos pulmões;

lemos dois ou três números de Dylan Dog, do Tiziano Sclavi,
e fomos tão burgueses, tão novos-ricos, a conversar sobre banda-desenhada
europeia; depois concluímos que a europa nos cansava imenso e
dissémos que o Dylan Dog era inspirado no Rupert Everett,
que eventualmente protagonizou o filme Dellamorte Dellamore, também
baseado num romance homónimo do Sclavi, falámos de coisas
inócuas mas que nos pareciam cheias de verdade e de força, como
"toda a gente devia ver esse filme e deixar-se mas é de coisas";
"é um dos melhores filmes dos anos 90";
e etc.
perguntou-me se sabia que o Rupert Everett era homossexual e respondi que
sim, quis saber se ele achava que tinha sido difícil para ele fazer
aquelas cenas com a Anna Falchi e disse-me, roçando a indignação,
que "por mais paneleiro que se seja, a Anna Falchi é a Anna Falchi, foda-se!"
depois ficámos calados e acendemos um cigarro, os carros rugiam
na rua e as pessoas eram um sussurro inaudível de órgãos e oxigénio,
irrelevantes, minúsculas; e nós os dois a ter de lidar com a tristeza
aguda e imensa de, por mais heterossexuais que fôssemos, nunca podermos
ser o Rupert Everett no Dellamorte Dellamore, de nunca termos
visto a Anna Falchi nua, em pessoa, de nunca a termos podido beijar.

7.4.15

sustentáculo

poemas em alemão no café segurando o livro de forma a que
os outros possam ver o título cavernoso, autotélico, escondido,
com as pernas cruzadas e a certeza de vir a arranjar uma
mulher destas práticas, com cursos de engenharia e relações
públicas e psicologia e matemática para me conduzir na
minha característica absurda de não ter carta nem carro
nem curso superior nem emprego e de não pretender nada
disso;

fingir apenas um fulgor uma indignação porque "a sociedade
está tão mal organizada", chorar no colo de uma mulher, cheirar
o colo de uma mulher e esperar que organize tudo para mim,
que me sustente o ócio, forçar a vergonha de uma vida em
vão para outro sítio recôndito e presumir que esta poesia
é tão boa que qualquer mulher ou qualquer homem teriam
tanta sorte em me amar em me proteger, prometer coisas
que nunca poderei cumprir e crescer inversamente, o fígado
nunca mais colapsa de tantos anos de álcool, os pulmões
nunca mais adoecidos, negros, raquíticos;

contar que se possa amar também um empregado de uma
pizzaria de franchise internacional que receba o ordenado
mínimo e eventualmente deixe de escrever por completo.