23.5.13

ardor

chegar aos trinta anos e só
me restarem argumentos destes,
não sou bonito mas há pior e nem
sequer é uma piada embora soe como
tal; ou seja, é uma piada, é uma piada
tragicómica, é uma piada como
a vida das pessoas.

esgotou-se-me a poesia toda.

micro-infantilidades

espero que um
dia,
quando chegar aqui,
nenhum poema
que se leia
imediatamente

seja teu.

("teu")

22.5.13

la mort de l'auteur

não sei porque espero ainda
(talvez seja da altura do ano
e de ver nisto uma efeméride)
que surjas de novo quando
me sento sozinho ao sol junto
ao muro com as marias-café
e os bichos-de-conta - tudo
animais que se enrolam em si
mesmos - que caminhes ao de
leve sobre a relva com os pés
descalços e abras a boca na
minha direcção que me atires
a tua voz na minha direcção
(julgo não me lembrar sequer
da tua voz) e que me dês
frutos vivos de mãos de unhas
e que dobres as costas no
fim do meu cigarro do meu
desespero cancerígeno. e
ainda espero mesmo que saiba
mesmo que tenha toda a
certeza de que devia ter só
guardado as tuas fotografias
envolvendo os ossos e a
proteger-me da sombra longínqua
que os amigos deixam contra
o corpo. "a vida é assim" ou "a
vida é isto" e deve-se continuar -
o corpo continua sozinho sem
notar que continua sozinho é
como um planeta que funciona
porque funciona e mais nada. e
um pouco de mim está neste poema
e sei que me terias dito quando
era tempo de mo dizeres que
devia ser sempre assim em tudo
o que escrevo.

"I just saw myself naked in the bathroom mirror and felt like donating to whatever my cause is"

a misoginia nos poemas nunca é apenas a misoginia
nos poemas. posso dizer que quero uma mulher para
foder e isso é redutor porque uma mulher tem de ser
para mais do que foder e a palavra foder é horrível
dizem-me. uma mulher é para amar mas se amamos
uma mulher ela é incapaz de nos amar de volta porque
aceitemos isto as mulheres são incapazes de amar ou
pelo menos de amar como os homens são capazes
de amar. nenhuma mulher se arrasta por amor nenhuma
mulher morre por amor mas de qualquer forma falo
de um certo tipo específico de amor. talvez devesse
dizer "quero que uma mulher me use e me foda" e assim
não seria misoginia - de qualquer forma já não o era à
partida porque a intenção quando escrevo "foder" é um
usar mútuo um carinho mútuo que sobre que ainda dê
para duas pessoas. duas pessoas que se queiram e que
se descartem. é mau pedir a uma mulher "foder" é misógino
mas também não é melhor pedir colo e mama e ternura
porque as mulheres são máquinas - os homens são
máquinas só que mais disfuncionais - e não servem para
mães. os homens dão melhores mães que as mulheres.
os homens a sério precisam de mulheres a sério que
os usem e que os deitem fora. quero dizer "deita-me
fora no fim de usar" mas que ao menos numa especificidade
de um momento qualquer haja um carinho uma
simpatia comum que nos encha a língua de ciência e
de mecânica e de astrofísica.

14.5.13

rinite alérgica

hei-de ser como meu pai com apenas
rebuçados nos bolsos. rebuçados e
memórias de outros lugares e toda
uma incapacidade de falar de verbalizar.
os dedos nos bolsos à volta com os
rebuçados já moles do calor e nenhuns
dentes com que os mastigar só gengivas
só bolsos e dedos e cuticulas feridas
e quando no verão os calções
urtigas atrás da torre velha da faculdade
com uma amiga ainda longe desse sítio
de rebuçados a pensar
devia-te ter beijado ou pelo menos
devia ter tentado mas nada
não aconteceu nada e por isso o caminho
implacável da vida até aos bolsos
com os rebuçados e os conselhos de
meu pai coitado quase sempre tão inúteis
quando deus fecha uma porta abre sempre
uma janela
como se a função das portas não fosse abrir e
fechar e abrir porque tem deus de dificultar as coisas?
porque nos mostram contra tudo o que somos
que só merecemos isto se aquilo? por isso
uma vida sozinho só com rebuçados moles
nos bolsos (são locais tão poéticos os bolsos
mesmo vazios - sobretudo se vazios - embora
estes com rebuçados e dedos e memórias de
meu pai) uma vida de onde os amigos se
retiraram pouco a pouco sem nobreza nenhuma
sem despedidas concretas só passos desaparecendo
em direcção a longe até que nem isso só
lembranças de um corpo num espaço agora cheio
de nada - como se bolsos onde nem sequer
nem tampouco
os rebuçados tão como os de meu pai
só para ele só para mim os rebuçados moles
e a partir de uma certa altura nem isso porque a
poesia leva-nos até os dentes.

6.5.13

ocelote

desapareceste no portão acenando a um novo
homem, que não eu, e viste-me conforme
atiraste o caroço da maçã que acabavas de
comer para o lixo. ainda há tantas perguntas
a que talvez devêssemos dar resposta.
se ao menos os meus braços em certas
alturas à volta dos teus quadris de
animal exuberante e mitológico.

5.5.13

cometera uma falcatrua

a discussão fútil e irrelevante sobre se
preferíamos Star Wars ou Star Trek foi
o que nos aguentou uma tarde naquele
comboio, entre a origem e o destino,
e ainda continuo sem poder responder,
só me lembro do Star Trek já sem
o Kirk e o Spock, apenas o Jean-Luc
Picard, mas, ainda assim, creio que
prefiro Star Trek. não me adianta, sequer,
responder-te a essa pergunta, aqui parados
e separados, já velhos e prontos a desistir
de todas as coisas iluminadas que valem
a pena, a preferir um centro de mesa
só com flores de plástico das mais
baratas, sem paciência para as pessoas na
rua e para o barulho dos cálices de
brandy e aguardente nos cafés. nenhum dia
será como esse e se nessa altura não
alcançámos a verdade relativa da ficção
científica, seguramente não será hoje, aqui,
dentro de uma tarde de maio, num intervalo,
enquanto bebo um café numa chávena da
lavazza, azul e branca, que te poderei dar
uma conclusão aproximada. ambos errámos em
segredo quando decidimos apaixonar-nos pelas
pessoas que magoam e que não querem saber,
e hoje somos nós os dois quem não quer
saber sequer se o Star Trek é melhor que o
Star Wars.

ouriço do mar

nunca no rescaldo de uma morte
tivémos de atravessar com um nó
na garganta um aperto no coração
um mar de sombras e conduzir
em silêncio para uma parte distante
do país ou do mundo.
nunca nos coube sofrer o suficiente
para merecermos tocar no limite
da poesia.

2.5.13

catarina

devia-te ter amado a boca em torno de um dia
que não acabasse, devia ter-te levado a concertos
noutro tempo, noutra época, e ter-te abrigado
da chuva com o meu casaco. devia ter estado
contigo em silêncio numa sala, rodeados de
móveis escuros e pesados e papel de parede
azul com motivos florais enquanto segurávamos
a mão um do outro com o medo próprio de
quem precisa que o outro não fuja, não morra,
não desapareça repentinamente. devia ter esperado
cinco ou seis meses numa sala, segurando a tua mão,
enquanto nos preparavam uma fotografia, enquanto
construíssem uma fotografia de onde nunca nos
morressem as cores, as veias, a paixão e o carinho.
de perfil, devia-te ter despido e beijado as coxas,
lentamente, devia-me ter alimentado de ti e de
chamar orquídea ao teu sexo, devia ter chamado
cona ao teu sexo e bebê-lo conforme se abrisse
semelhante a uma orquídea, devias ter amado a minha
boca com uma orquídea quente em torno de
um dia que não acabasse, devíamos ter sido
felizes noutra época, noutro tempo, a sair dos
concertos e tu com frio, fugindo da chuva, para que
despisse o meu casaco e to colocasse sobre os
ombros. devíamos ter tido uma casa com uma
despensa onde existissem cestos de vime com
espinhas de peixe e escamas lá dentro, devíamos
ter ferido as costas e as pernas um ao outro
com espinhas de peixe, com ossos de pássaros
mortos, devíamos ter sonhado que dançávamos
com pessoas antigas, passadas, numa sala com
móveis sombrios atrás e papel de parede e cortinas
pesadas e escuras. devia ter amado a tua boca com
a minha boca com as minhas mãos ao redor de um
dia que não acabasse nunca, onde as palavras
chegassem e onde as pessoas jogassem às cartas
em silêncio, devagar, caindo do tecto em direcção ao
chão como penas de pássaros mortos, flutuantes,
com sorrisos de pó e de nada e olhos guardados
em armários escuros. devia ter-te levado a uma
estação de caminho-de-ferro e ter esperado cinco,
seis meses que nos fotografassem, que nos etiquetassem
e que nos arquivassem como numa memória naquele
filme que vimos durante uma matinée de quinta-feira -
em itálico sempre porque um estrangeirismo erudito um
francesismo -, que nos levassem para longe em bolsos,
em barcos a vapor que naufragassem a meio do oceano
para podermos viver eternamente num sítio azul escuro
onde devem pertencer as memórias aquáticas.
devia ter-te oferecido maçãs encarnadas, devia ter-te
pedido um beijo em contra-luz, à noite, perto dos
candeeiros e do quiosque octogonal já fechado, devia
ter-te dado flores. devíamos ter sido como unhas ou
cabelos, vivos depois de morrermos, mesmo que sejam
as únicas coisas mortas, de nós, quando vivemos.

as bicicletas no parque

"o que é que há de especial no blues?"
há uma angústia uma solidão uma dor
uma pobreza um amor doente um par
de lábios a desesperar por um dedo de
tabaco
disfarçados de deserto à noite quando
os bares abrem as portas e as bebidas
são mais quentes que os vidros que
os copos que os dias

mas só aqui postos em meio de dois mil e
treze no vento insuportável do litoral
oeste de portugal é compreensível que não
percebamos nada disso.

mamarracho

vi uma criança comendo folhas e
bichos, chorando,
alguns homens procuraram
nela qualidades de
misticismo, verdades escondidas,
uma sapiência ancestral,
o conhecimento das ondas
electromagnéticas,
do espectro ultra-violeta.
comia folhas e bichos,
chorava,
nunca tinha visto o
King Kong original no
cinema.