20.12.15

não sei se és tu nas fotografias que
às vezes aparecem, que outras pessoas
me trazem sem querer

quem me dera que fosses
quem me dera que não fosses

não sei onde estás ou onde tocas mas
procuro-te na improbabilidade
das fotografias dos outros como
se ainda fôssemos alguma coisa
como se ainda pudéssemos ser
qualquer coisa.

13.12.15

electrónica

o relógio em dezembro à noite incessante mas lento
debaixo das escadas com o tempo todo para não fazer
nada a atirar pedras de carvão para dentro de vasos
sem terra a pensar nos incêndios que se atearam há
tantos meses a pensar na morte de pavões dentro de
contentores uns guinchos tristes de mamífero nos contentores
aves soando a mamíferos por causa das úlceras e da
morte
é tão mais fácil falar da morte tão mais simples tão mais
bonito no contexto poético da depressão que todos procuram
ler

a minha filha é livre de morrer abraçada a um pavão num
contentor de ser encontrada pelos homens às cinco da manhã
no meio de lingerie usada e jornais de há tantos meses

a minha filha nua
um copo de água
uma aspirina
o lado esquerdo
do corpo
todo
apanhado
debaixo das escadas com o tempo todo para não fazer
nada para além de atirar pedras de carvão contra os pavões
rir muito alto bater com as mãos nas paredes cantar
coisas de que já ninguém se lembra
inventar histórias às velhas e acreditar em todas as mentiras
que se dizem

a minha filha na água
com uma aspirina e os
pavões
chorando petróleo
guinchando
na solidão
no tempo
no lugar
no modo

9.12.15

cabo formado por uma elevada montanha

o café está queimado na língua e não
acalma nem abafa o sabor
do tabaco. é só café, só um modo
cansado de falar das coisas,
das feições da filha da
cigana tão iguais às
da filha da
outra. o café queimado reúne-nos
a todos, o tabaco,
a vida a ir para esta merda.

8.12.15

cattleya mossiae

j.

num lugar onde te lembres do pó que comemos
mas também das laranjas
a que chegavas a cheirar na escola e à conta
das quais os miúdos te apontavam e riam
sem que soubessem
pois ninguém sabia ainda
a música luminosa que te nasceria dos olhos
e das mãos e das palavras
ainda que hoje sejam ditas numa outra direcção

num lugar onde caminhes sozinha e já não te
veja nem reflectida nas costas de uma colher de
chá
e não me ouças por necessidade de esconder os
ouvidos à angústia

sempre num lugar onde o amor na água com os peixes
desorientados
e as minhas unhas arranhem areia no fundo do mar
em busca de laranjas ou de palavras que ainda cheguem
até ti mesmo que ténues
farrapos de uma voz animal
com que nos embalámos tantos dias dentro de tantos meses

olha as feridas abertas tão férteis contra os vidros
num lugar onde a memória não se apaga
uma estrela longínqua morta há milénios mas
cuja luz
ainda
até ao fim de parágrafo de um ser humano

3.12.15

quadrado #8: telefone

T.

lavo as mãos com a água mais fria que existe; és uma imagem distante,
um rio de sangue menstrual em cima da cabeça de uma boneca, no chão
de uma mata, tudo misturado com folhas e terra. vejo as tuas pernas
despidas ao longe, de trás, nas fotografias. vejo um cancro de luz
a destruir-me o tórax a partir de dentro, tenho fotografias com que o
atestar. a preto e branco.
lavo a fruta com a água mais fria que existe, levo-ta à boca com os dedos
mais gastos que tenho, podemos comungar isto, pelo menos: a menstruação
nas fotografias, os frutos, os cabelos, as pernas, as nádegas.
enxaguo as palavras no gelo da água; conto-as, estendo-as ao sol, seco-as
e só depois tas entrego, deito-as no teu colo esperando que importem,
que tudo isto sirva um desígnio, um propósito.
caminho no chão onde fotografaste a cabeça de uma boneca sobre as folhas,
ando sobre a memória do sangue menstrual, espero que alguma
estrada me leve até onde estejas; gasto todo o tabaco antes do tempo,
o tempo, o tabaco
deviam ser gastos onde as tuas mãos lavadas levassem à boca um copo
de leite sem lactose.

1.12.15

when the devil calls I'm gonna ride that train

quatro do onze, dezoito do onze, dezoito anos, dezoito buracos num
jogo de golfe, dois homens a ler poemas do William Carlos
Williams em voz alta, bêbados, que a poesia é para bêbados.
dezoito copos de aguardente, dezoito copos de bebedeira,
nenhum fígado.

10.11.15

lama

em nenhuma margem
de nenhum rio
escrevi palavras
como fiz nas margens
dos livros

em nenhuma margem
de algum mar

20.10.15

pá(t)ria

o meu país é uma geração de casas
a cheirar a aranhas, a cheirar a veneno.
o meu país são bêbados a pedir cigarros, putos
romenos a pedir esmola para não
levarem porrada dos pais. o meu
país são pessoas a falar alto nos cafés
sobre motores e mulheres-coisas,
o meu país são trocos nos bolsos
para copos de tinto rasca, são
carros parados nos passeios à
frente das seguradoras, são
velhos a apanhar sol como se fossem
cães, são
botins de vindimar deixados
à entrada das casas. o meu país é estar-se
deprimido porque nos deixaram sozinhos mas
não se poder porque o mais importante
é a televisão e a economia e as contas,
a aritmética completamente deslocada
num lugar onde se deviam dormir sestas e beber bagaço
à noite, um lugar de estranhos abraçados
uns aos outros nas adegas, nos salões
de baile arruinados das casas senhoriais
provincianas. o meu país é um pão
com chouriço a arder num forno de pedra,
o meu país são mulheres que se afastam sobre o mar,
o meu país é um país de esperas,
um país que anela freudiano por uma
salvação escatológica saindo da neblina.
o meu país são bichos cheios de pus e matemática e vozes.
o meu país é uma metáfora, é um
silogismo, é um poema cada década mais
decadente. o meu país é uma dor de ouvidos.

18.10.15

impromptu

quando te trouxerem a comida numa salva de prata
não te esqueças de a devolver num prazo de, pelo
menos, três semanas (no máximo, três semanas e
meia), fica parado a observar os camiões e os carros
a levar materiais e pessoas para o outro lado do
mundo, evita dever dinheiro, evita o tabaco dos
outros. quando te chamarem pelo nome tenta
lembrar-te, ao certo, de qual é o teu nome, deixa
que te chamem princesa e sorri, envergonhado,
quando te derem dois beijos no rosto e uma das
outras mãos te descer pelas costas até às
nádegas. devolve o que te dão, regurgita o que
te dão, constrói uma casa para pássaros,
observa os camiões passando na rua, fazendo
estremecer as fundações das casas, à noite --
e também de dia, mas sobretudo à noite --,
recorta datas de dentro das agendas e alimenta
os teus animais com bocados de papel e insectos.
nunca te esqueças de devolver o que te deram.

12.10.15

black sheep

das coisas mais assustadoras é a anormalidade,
herbívoros silenciosos invadindo as cidades
rente à noite,
comendo carne nos becos e nas arcadas
e junto aos caixotes do lixo.

3.10.15

geriatria

as velhas
são dentes
a ranger
nas capelas
rezando o
santo terço
do rosário
batendo os
dentes o
queixo com
um ritmo
um sincronismo
intangível de
solidão e
de amor
e de
doença não
há como
não amar
as velhas
dantes novas
sem a
preocupação da
diabetes com
o fogo
na cona
de saia
arregaçada nos
celeiros sem
pensar na
melodia solitária
muitas décadas
depois às
dezoito e
trinta nas
capelas a
pedir ao
cristo saúde
dinheiro melhorias
várias ou
a não
pedir nada
a estar
ali apenas
porque sim

26.9.15

não temos porque lembrar as coisas não temos porque esquecer
as coisas

só temos uma fornalha antiga e uma mulher a atirar pedaços de
madeira lá para dentro e recordações dos braços

que noutra altura nos mantiveram
quentes à noite

12.9.15

maría

poucas mulheres teriam sido capazes de lavar as mãos do sangue de
ovelhas após um parto e ainda encontrar nelas a beleza decadente
que a poesia exige.

procuro amar-te em todas as mulheres que conheço mas as minhas mãos
nunca te encontram. as minhas mãos limpas de sangue animal
nunca te serviriam.

2.8.15

das condições da alma

não tenho tempo
e o tempo nem sequer
cura coisa nenhuma

porque vistas bem
as coisas
o tempo não existe
para além dessa ficção
humana

deste nosso complexo
divino de explicar as coisas

para propôr uma resposta
científica
à deslocação no espaço

31.7.15

os fumadores morrem prematuramente

a poesia alinhada à direita, um saco, um tio ostomizado, vagaroso, a ter de aprender a viver assim; i.e., a cagar de modo automático para dentro de um saco; a ter de aprender a lidar com a flatulência incontinente nos espaços públicos, a ler poemas nos cafés, alinhados à direita, tão ridículos, pensa, tão estúpidos

um destes dias devia aprender a tocar guitarra
ou piano
devia olhar para os livros
devia ler os livros
sair de casa

alinhar a poesia à direita, o musgo, o húmus da poesia todo
alinhado à direita
assim, longe, separado do resto, do usual, vagaroso, ostomizado, a ter de aprender a viver assim, vai ao banco e diz-lhes que estás doente da cabeça (talvez estejas, talvez estejamos todos, não é?), uma cefaleia intocável, uma doença metafísica, na cabeça, contida no espaço físico da cabeça porque quando pensamos sentimos o pensamento na cabeça, atrás dos olhos, debaixo do cabelo, no meio das orelhas. não é?

um destes dias devia sair à rua
bater em alguém e
fugir correr muito correr
muito depressa até
cair de exaustão
esperar que nunca me apanhassem

24.7.15

dez pães

onde quer que estejas por favor não demores pois urge que venhas
há uma caixa com ossos enterrada no quintal das traseiras à
espera que lhe pegue fogo que a incendeie para que depois nos possamos
esquecer dela; sempre apaixonado só isto; não demores de onde vens
com meia dúzia de peixes para o jantar com meia dúzia de urzes de cardos
secos com duas ou três fatias de pão vens de uma ilha vens de uma escada
de uma palavra mas urge que não demores mais do que o necessário
pois o fogo não se ateia sozinho os dedos não se entrelaçam por si
só e a saliva não irriga a língua alheia alienígena

uma caixa de sapatos enterrada não tem propósito longe de um par de pés

16.7.15

sova de cinto

anos oitenta, quarto com vista para a praia, sete
e quarenta e cinco da tarde, junho. tenho a
televisão ligada, que vai começar o telejornal
entretanto; tenho a rádio ligada mas não ouço
nada. há duas gaivotas pousadas no parapeito da
janela, um carro parado em frente ao café
do outro lado da rua há mais de dois dias.
encho um copo com água da torneira, vem
a saber a lixívia porque é terça-feira e a
água sabe sempre mais a lixívia à terça. é
só para tomar um ben-u-ron, um panadol,
qualquer merda que me alivie a cabeça dos
anos oitenta, das gaivotas, das mulheres que
foram deixando peças de roupa pela minha casa.

3.7.15

maria

tão longe, a lituânia, tão escura, tão pesada, um primo
enviando cartas desde lá, as cartas demorando tanto tempo
a chegar, passam pelas mãos de tanta gente, passam no
esófago e no estômago e nos intestinos das máquinas e
nas asas dos pássaros e caem na caixa do correio;

um primo na lituânia escrevendo, falando, «aqui está
tudo bem, temos pão, temos água, temos amor, nas ruas
existem pessoas, as pessoas que estão na rua não nos
vêem -- ninguém vê ninguém --, comemos às nove da noite,
comemos pão, bebemos água, a luz falta quando faz muito
calor ou muito frio, sentimos a tua falta, espero que a presente
te encontre bem; a tia manda beijinhos.» a tia na lituânia,
tão pesada, já não se lembra da idade em que foi nova
e dançou com homens que não eram o tio, em bailes
e em casas e em festas e em becos, mas essa era uma
dança diferente que enrubesce no rosto (sentimos a tua
falta, a falta do calor das tuas mãos buscando o calor
do meu corpo abaixo da cintura, no escuro da lituânia,
no peso do quarto, atentos aos barulhos do corredor,
aos passos do tio pela casa, com a porta entreaberta
e os lábios)

os lábios tão pesados, os frutos tão escuros, o país tão longe
as mãos as nádegas as mamas a língua
em riste
na pele na boca

tão longe daqui, tão longe, tão longe, tão longe
-- meu deus, há tanto tempo --
(ponto de exclamação)

24.6.15

5:45

o aspersor abre-se ruidoso
como uma flor de água
cancerosa e parada
um olho

mamã

um olho como o
do cu

rodando sobre si mesmo
como uma cama de
incesto eléctrico
um cancro
mãe
um cancro de paus
batendo no sotaque
do sono
na luz da solidão

está escuro e ouço a água
rodopiando na relva
e corro como um cão
na relva
à procura da água
do cancro
de uma flor aberta
no olho
do cu
com que morrer lentamente
com que fechar a porta
do poema
e deixar só um tapete a dizer
bem vindo
para quem quiser ou
precisar
de limpar os pés a seguir

porque temos de limpar
os pés no fim de andar
na rua e entrar
em casa

23.6.15

é necessário que uma casa seja uma casa
e não uma imagem de uma casa ou um
poema de uma casa

que uma parede seja uma parede
que uma verdade
não sejam
só palavras
e mentira pelo
meio

11.6.15

pavão

trago a areia na roupa
na pele
sou um hipopótamo
gordo e cansado
e velho

tão velho

chorando líquenes
para cima da margem de um rio
seco
na televisão
apagada dentro
de um desses
documentários
de domingo
em tua casa

nome

a minha boca ardendo de uma comichão, uma tensão,
uma tesão,
uma piça dura, invisível, indizível,
os meus olhos arando terrenos vastos, as raparigas correndo
na rua à noite,
vou só deixar-te aqui uma carta na caixa do correio
rindo à noite e tudo tão afastado das coisas que fazem
sentido,
os meus dedos morrendo, dobro-os, olho as unhas, os lados,
está tudo amarelo, castanho, manchas pelos dedos fora
como os dedos dos mendigos que apanham beatas do chão
e do lixo e as raparigas rindo, fugindo, o sangue dentro delas
mas eu já com nenhuma que sangre, já não posso
querer nenhuma mesmo que sangre,
uma comichão, uma tensão na boca, entre os dentes, no
espaço dos dentes cariados, o ar muito pesado por entre
os dentes, a apertar, a laringe inchada ou só uma
impressão, um cálculo nervoso errado.
os meus olhos arando a boca presa aos dentes contra
o chão mole da fazenda dos meus antepassados,
quantos dos meus antepassados se terão suicidado quando
a vida lhes pesava e apertava o ar na boca?, quantos não
terão conseguido trabalhar a sobrevivência e
o conformismo, para quantos tudo subitamente pequeno demais
não chegou para tapar a solidão e os espinhos secos da angústia?

10.6.15

estamos à procura de chaleiras que fervam água com precisão; cansados do amor que magoa no orgânico de nós, a chorar de não haver, afinal, nada que seja um bocadinho mais mecânico, que não saibamos resguardar-nos melhor da loucura; estamos a ponderar a vida num hospital psiquiátrico, "talvez fosse melhor", embora depois nos apercebamos da saliva seca ao canto da boca anos a fio e o cérebro depois de uns meses só um barulho de nervos e de química, sabemos que as pessoas se vão esquecer de nós porque também nos esquecemos das pessoas; não nos esquecemos nunca de algumas pessoas que se esquecem de nós e nos abandonam em orfanatos de uma certa lama existencial, fecham à chave o egoísmo e levam de nós os lábios as pernas os braços o cheiro a pele o corpo. muito mais mecânicas que orgânicas, para quem as vê do nosso lado realmente a não quererem mais saber, distantes como fotografias de velhos mortos há cinco ou seis mil anos atrás, mas a doer mais, a doer imensamente mais, porque aos velhos nunca os conhecemos, nunca lhes tocámos, nunca nos tocaram a nós. estamos à procura de um fósforo que acenda a morbidez de um fogão a gás, que quente contra a ponta dos dedos nos sussurre "vai ficar tudo bem" para que nos possamos rir e saber "nunca vai ficar tudo bem porque o amor"

estamos à procura de estufar o coração com batatas e feijão-verde e água e colorau e louro e ervilhas e cenoura, sozinhos e com vergonha da nudez, com medo dos hospícios, do esquecimento, miosótis à beira da água a ferver num rio de gás, com o calor de um fósforo contra a cabeça dos dedos "vai ficar tudo bem"; uma escada apoiada numa estante, um vidro na planta do pé mas vai ficar tudo bem (não fica).

estamos vestidos com roupa suja e antiga, a mesma de há pelo menos doze anos

mothers in fiction

o sono não é uma asa que nos leve a um descanso
é só uma desculpa para que a dor não doa como
quando estamos acordados e os segundos têm de
ser assim com tudo isto
ao fim de tantos anos ainda têm tudo isto

uma vela tão perto do fim
mas a atrasar-se sempre demais

9.6.15

setenta

lamento, então, que na velocidade de viveres tenhas perdido noção de como
a alma se revolve na terra húmida, no calor, no papel, que dos meus olhos
não tenhas tirado nada porque são só olhos banais, castanhos, cansados.
que as minhas mãos violentas e às vezes violetas não te tenham chegado nas
feridas, não te tenham servido para levar comida à boca, para te segurar
no frio do inverno, pouco capazes, pouco masculinas. que a minha voz
se tenha tornado cansativa no seu tom monótono e monocórdico de quem
não afasta já uma rouquidão instalada no fundo da saliva. sob a doença há
ainda uma oferenda de aspectos luminosos a que te fechaste, a que não vais
querer mais chegar. existe um tupperware no real do teu frigorífico, maços
de tabaco vazios agora no lixo, mas no espaço do meu passado ainda a
ocuparem os seus lugares na tua sala de estar, um edredão por lavar a seco,
livros, um filme. lamento que nunca venhas ler-me, que não venhas saber-me,
que tenhas atirado tudo para um poço escuro de estatísticas e de irrelevâncias.
os meus olhos banais, cansados, destruídos, vermelhos do sono e do álcool
e do tabaco, da água do mar, só rebolando no vazio, a despropósito,
nus de sentido, secos, a mais valerem estar guardados numa caixa de chumbo
dentro de uma gaveta. lamento, pois, tão cada vez mais a sério, as décadas
onde caibo e onde me estraguei de amor errado, deslocado, lamento
o sol não ser um carro de fogo que me leve para um continente de outra
água mais certa, onde no encanto aceites as minhas mãos, ainda que na asfixia
e no frio às vezes violetas, às vezes violentas, e as trinques quando comeres
laranjas dos meus dedos.

3.6.15

guia prático para lancetar um quisto

existe um homem que todos os dias sobe a rua onde mora com um guarda-chuva
pendurado na parte de trás da gola da camisa. bate nos gatos com paus e pedras
e cospe no chão e veste sempre o mesmo par de calças castanhas. o homem é
feio e é mau, mas não é pior nem mais feio que todos os outros homens. existe
uma rapariga que todos os dias toma café de óculos escuros no café ao cimo da
rua onde o homem mora. lê revistas light e livros do Henry Miller e do Samuel
Beckett e do Carl Jung, fuma cigarros slim mas não light, como as revistas. o
homem sai de casa todos os dias com as mesmas calças e com a mesma violência
de paus, de pedras contra os gatos, a mesma sujidade de cuspir no chão quase
exactamente nos mesmos pontos precisos, aliterando a saliva na calçada, nos
passeios, na estrada e a rapariga só está no café já guardada todos os dias, também,
independentemente das fotografias que tira, nua, quando está sozinha em casa e que
depois mete em sites. o homem não sabe dessas fotografias e também não lhe interessa.
ama a rapariga e transfigura-se subitamente, interessa-se pelo Jung e pelo Miller embora
nunca tenha lido Miller, interessa-se pelos dedos finos de quem talvez toque piano
virando as páginas da revista light e pelos óculos escuros talvez grandes demais para o
rosto, e às vezes paga a meia de leite que a rapariga bebe todos os dias sem lhe dizer
nada. mas só é homem quando sobe ou desce a rua e fica sozinho consigo mesmo,
sem transfigurações e sem amor, só doente como todas as pessoas e irritado com
os gatos, com as pedras da calçada, sempre com o guarda-chuva ali ridículo e absurdo
pendurado na parte de trás da gola da camisa, a regressar para casa com vista a matar
a fome e provavelmente masturbar-se com a ideia da rapariga de óculos escuros no
café, alheio às fotografias dela nua, que seriam, a propósito do onanismo,
uma grande ajuda.

18.5.15

desumanização

que a casa nos caia então sobre as cabeças
e cada centímetro de nós esmagado sob as ruínas
arda sem voz, um palácio de ossos e de
oxigénio a ser consumido, não termos servido
nenhum propósito agora que as corças correm
tão distantes dentro das florestas escuras,
a única luz um par de olhos animais e
a casa derrubada sobre nós, incandescente,
um espaço onde fomos e tivemos mas
agora apenas uma gramática rudimentar
de memórias que não alimentam nenhuma
biologia que se possa conceber.

11.5.15

«My lament is still rebellious;/despite my groans, his hand is just as heavy.» Job 23:2

a rádio dá chuva, não tenho nenhuma mulher ao meu lado a quem possa pedir
"salva-me disto", procurar uma mãe, uma mão, um húmus em todas as
mulheres que me deixam vê-las nuas e tocar-lhes no meio das pernas com
o encanto de um neófito que fode pela primeira vez. tenho um par de meias
desirmanadas e uma delas desce-me abaixo do artelho, ocorre-me quão
feia é a palavra "artelho" e que existem partes no corpo tão mais hediondas
do que os artelhos, que mal fizeram, para merecer esse nome?

a rádio dá chuva quando devia dar um relato da bola, o vizinho de baixo vê
as notícias e eu só as ouço pela janela, com um par de meias desirmanadas,
uma em cada pé, os homens da meteorologia dão sol e calor enquanto a rádio
no ponto oposto da física, dá chuva, estática, chuva parada a mover-se num ruído
que roça o silêncio. que tempo fará do outro lado do mundo?

o vizinho de baixo tem dois cães e uma mulher a quem deve pedir que
o salve disto tudo, que nunca o esqueça, que lhe aqueça os pés à noite
na cama depois de comer um iogurte de côco e beber um chá verde ou uma
merda dessas. e ficam a ver programas de notícias até ficarem com sono.
duvido que o vizinho de baixo tenha ouvido a chuva estática na rádio,
duvido que alguma vez tenha precisado de ser salvo por alguma mulher
ou por alguma novidade meteorológica. é por isso que eu é que uso
meias desirmanadas (uma em cada pé) e lamento o vazio na cama
e noutros sítios mais distantes que ninguém sabe ao certo onde ficam.

9.5.15

La Carne (1991)

é imbecil viver a vida com a expectativa de encontrar a mulher
com as mamas mais bonitas do mundo e amá-la tanto que
sentimos não a merecer, ir para a praia em frente à casa e cortar
os pulsos e esperar, só para ela vir atrás de nós e, ajoelhados na
areia húmida rente ao mar, nos lamber o sangue dos braços
e nos levar de volta para dentro. o resto do filme pode ser
ridículo -- reconheço que é --, mas hei-de me lembrar sempre
dessa parte. ou do fim, em que o pianista a mata e a guarda
dentro do frigorífico, para a ir comendo ao longo dos anos,
tê-la dentro de si, porque a amava tanto que não conseguia
mais viver com ela, mas também lhe era impossível estar longe.
o mais triste é alguns de nós entenderem de facto isto.

4.5.15

ruanda

vem habitar para onde seja outubro, onde nenhum
musgo corrompa as estátuas nos jardins,

estenderemos uma toalha no chão e comeremos
pão, beberemos leite na fome, afugentaremos
o fantasma da fome,
o estigma

3.5.15

letissimulação

fui um rosto com lábios secos
fui um forno numa fábrica de tijolo abandonada
fui uma boca escancarada num faraó por mumificar
fui um cardo contra as pernas e a planta dos pés dos que me tocaram
fui uma estrela incessante no vácuo e apagaram-me
fui um dedo não preênsil tocando nos ramos das árvores queimadas
fui uma voz num corredor vazio
fui um navio embatendo no fundo do oceano
fui um bicho fingindo que dormia
fui uma corda de seda onde as senhoras magoaram os pulsos
fui uma mulher esperando pela menstruação
fui uma corça galopando no meio de um incêndio
fui uma floresta onde antes tinham sido casas

breathing smoke

tivémos um ciclo de tempo, uma mão-cheia de folhas secas,
vimos as unhas entardecer, passámos ao longe nas colinas
enquanto nas eiras as crianças vergastavam as sombras
com vides verdes; comemos um do outro, falámos a gramática
um do outro, fugimos da sombra nos dias de sol e conversámos
sobre o feno sobre as árvores sobre os livros e sobre amónia
de vez em quando. quando nos olhávamos eram essas as
palavras precisas, as nossas mãos uma na outra por dentro
da cidade, por dentro do tempo, mas o tempo nunca parou
como devia, nunca se compadeceu da nossa voz angustiada
pedindo esmola de coração e vísceras e pulmões e nervos.
amo-te como uma catedral serena, comungo-te apesar de
as aves migratórias, apesar de as coisas, de as dores;

quereria saber como pedir perdão como resolver os problemas matemáticos da alma
mas não sei e só me resta confiar-te as margens do meu corpo
da minha idade esperar que não as vergastes conforme o sol lhes aumenta as sombras
esperar que me guardes onde nunca seja escuro nunca seja frio onde o vento
nunca me desoriente os sentidos onde três ou quatro sóis me encandeiem e façam florescer
os dedos

guardei as folhas secas com que entardecemos neste tempo
e posso fazer-te um colchão onde dormir, posso fazer-te um
casaco que te proteja do frio, uma árvore, um brinquedo,
um prato de onde comerás o meu corpo inteiro.

30.4.15

(é irrelevante o que diz a voz, a boca,
tudo o que importa ser dito está nos dentes
cariados, nas nuvens de tabaco a fugir
das narinas, das unhas, dos dedos.)

hipocondria

este poema é o pior poema de sempre.
está nu, está oco, e o poema não se
quer oco nem nu, há um certo tipo de
folhagem que se tem de vestir a um
poema, um certo tipo de valor que
tem de se lhe dar. mas este poema não
tem rigorosamente nada, a não ser uma
teimosia muito funda que se confunde
quase com um sussurro de um filme
antigo desses que desapareceram
antes sequer de serem exibidos nos
cinemas e no entanto fala-se dele e
existe sem nunca ter sido visto.
o poema devia ao menos ter uma pessoa
dentro de si que o enchesse de analogias
e de metáforas e de, quanto mais
não fosse, ironia ou um oxímoro
ou dois. um poema que tivesse
sido pensado, prensado, todo ele
edificado em mármore, para as gerações
vindouras se deleitarem à sombra das
suas ameias, para se refugiarem no seu
interior. não se está bem dentro nem
perto deste poema; não é uma árvore
nem um prédio nem um animal nem
um carro, é um poema e nem sequer
um poema muito bom nisso. e se se
corta jorra sangue e o poema olha
e toca e lambe o sangue que lhe sai
do corpo e não entende como, não
entende porquê. um poema devia
ser como uma fazenda, como uma seara,
como um céu sem nuvens; se sangra, se
grita, se chora --

o poema tinha muito boas imagens na cabeça
mas não conseguiu encher-se, não conseguiu
povar-se de nenhuma delas.

14.4.15

olhos

é triste o século vinte e um na distância
ter de ver os bandos de aves migratórias
no céu a ir para longe e não serem eléctricos
serem ao invés orgânicos; o que é orgânico
é mais complicado de entender e quando
aberto causa asco e náusea no cheiro e
nas colorações; nenhuma ave migratória
pode levar gritos do coração até onde
quer que estejas e apesar de tudo o
coração guincha muito muito alto mas
ninguém ouve pois apesar de tudo é
orgânico; se pudesse seguir nas costas de
uma ave migratória em bando com as
outras até ao país de verão onde te
encontras incandescendente de pedaços
orgânicos no século, à distância
lamentavelmente
seria isso que faria até se calar nas tuas
mãos no meio da música eléctrica da
tua pele dos teus lábios do teu corpo não-
-triste; mas as aves chegam-te sozinhas e
não há meio de te enviar isto porque já
ninguém escreve sequer cartas.

13.4.15

espectógrafo

considerei que o sucesso é um prego ferrugento numa parede,
numa casa velha, onde os homens penduram casacos ao fim do dia.
o meu amigo chegou com alface para a salada, comemos
massa com carne frita, bebemos vinho branco porque se me
tinha acabado o tinto, com um certo humor triste fizemos pouco
da situação, "vinho branco é a coisa mais parecida com vinho,
que existe", mas despachámos a garrafa.
ouvimos música ligeira depois do jantar enquanto víamos
os carros e as pessoas, lá em baixo, sentados na varanda;
embora víssemos sempre mais os carros do que as pessoas,
os carros vêem-se melhor ao longe, anunciam-se melhor, num
movimento de luz e som e metal e plástico e vidro e borracha
a respirar poluição nos pulmões;

lemos dois ou três números de Dylan Dog, do Tiziano Sclavi,
e fomos tão burgueses, tão novos-ricos, a conversar sobre banda-desenhada
europeia; depois concluímos que a europa nos cansava imenso e
dissémos que o Dylan Dog era inspirado no Rupert Everett,
que eventualmente protagonizou o filme Dellamorte Dellamore, também
baseado num romance homónimo do Sclavi, falámos de coisas
inócuas mas que nos pareciam cheias de verdade e de força, como
"toda a gente devia ver esse filme e deixar-se mas é de coisas";
"é um dos melhores filmes dos anos 90";
e etc.
perguntou-me se sabia que o Rupert Everett era homossexual e respondi que
sim, quis saber se ele achava que tinha sido difícil para ele fazer
aquelas cenas com a Anna Falchi e disse-me, roçando a indignação,
que "por mais paneleiro que se seja, a Anna Falchi é a Anna Falchi, foda-se!"
depois ficámos calados e acendemos um cigarro, os carros rugiam
na rua e as pessoas eram um sussurro inaudível de órgãos e oxigénio,
irrelevantes, minúsculas; e nós os dois a ter de lidar com a tristeza
aguda e imensa de, por mais heterossexuais que fôssemos, nunca podermos
ser o Rupert Everett no Dellamorte Dellamore, de nunca termos
visto a Anna Falchi nua, em pessoa, de nunca a termos podido beijar.

7.4.15

sustentáculo

poemas em alemão no café segurando o livro de forma a que
os outros possam ver o título cavernoso, autotélico, escondido,
com as pernas cruzadas e a certeza de vir a arranjar uma
mulher destas práticas, com cursos de engenharia e relações
públicas e psicologia e matemática para me conduzir na
minha característica absurda de não ter carta nem carro
nem curso superior nem emprego e de não pretender nada
disso;

fingir apenas um fulgor uma indignação porque "a sociedade
está tão mal organizada", chorar no colo de uma mulher, cheirar
o colo de uma mulher e esperar que organize tudo para mim,
que me sustente o ócio, forçar a vergonha de uma vida em
vão para outro sítio recôndito e presumir que esta poesia
é tão boa que qualquer mulher ou qualquer homem teriam
tanta sorte em me amar em me proteger, prometer coisas
que nunca poderei cumprir e crescer inversamente, o fígado
nunca mais colapsa de tantos anos de álcool, os pulmões
nunca mais adoecidos, negros, raquíticos;

contar que se possa amar também um empregado de uma
pizzaria de franchise internacional que receba o ordenado
mínimo e eventualmente deixe de escrever por completo.

26.3.15

meu pai costumava chamar-me hard reset

toquei-me à janela e ouvia
Archie Bronson Outfit e
sentia-me tão pós-moderna
tão alt lit
tão avant pop

com o dildo entranhado
na cona
e a outra mão tirando fotografias
nua
esperando que
algum vizinho
noutro andar

distante
com uma mão
segurando a cortina
da janela e a outra
apertando a piça

se viesse em meio
minuto.

25.3.15

gutural

dormir apenas esperar
pois ainda não é hora
na ficção do tempo

porque a ficção
bem arquitecturada
bem construída do
tempo acaba por
nunca ser inteiramente
nossa e tantas
vezes mais valia
dormir esperar

por quem vale a
pena e até lá
só no quarto de
luz acesa sob
os cobertores

fechar os olhos
morrer enquanto
viver não é assim
tão importante

hebraica

«quem morre nunca parte, quem parte morre sempre»



atravessaste um degrau, uma idade, uma porta dessas
casas abandonadas cuja vida permanece no vento e
nas mudanças diárias da luz do sol nas paredes e no
soalho;

atravessámos uma morte, vê: devíamos ter morrido,
devíamos ter dançado mas não, nem morremos nem
dançámos, tomámos comprimidos, fizémos tatuagens,
operações aos olhos, amámos, fingimos ter conjugado
uma gramática de amor, sobretudo, tirámos fotografias
dos nossos corpos em descanso e chegámos um
ao outro em silêncio e em segredo quando nunca
devíamos ter chegado, devíamos só ter adormecido,
ter partido para muito longe e ter esquecido

a vida um do outro
para que não nos magoemos mais nas lâminas no sangue
no cheiro a relva dos cabelos cortados da sujidade
dos corpos que a água não lava porque a água
já não existe como existia dantes onde um
abraço longo

uma estrela acesa na garganta quando falávamos embora
agora
devêssemos ter morrido como lagartixas a quem se calca
a cabeça contra o cimento no calor da primavera
devíamos ter calcado a cabeça um do outro contra o
chão contra o cimento para que não doesse
termos de continuar vivos termos de
fingir
comer a morte um do outro sem apetite

enroscar lâmpadas nos casquilhos ter de aturar os outros
dando conselhos ter de mentir ter de omitir ter de fingir
ligar mas pensar apenas no movimento helicoidal dos
filamentos das lâmpadas e continuar
a fazer generalizações continuar a odiar
pessoas continuar
a cometer os mesmos erros sempre

e dormir longe de toda a gente quase acreditando
que é melhor assim.

21.3.15

publicar título

haverá pão suficiente
na despensa para que
esperem à mesa durante
os meses necessários
e não morram de fome

contar-se-ão aves no
céu e peixes no mar
e histórias num lugar
intermédio onde nem
os pássaros ou os
peixes mexem ou
habitam

contar-se-ão contas de
rosários antigos e ainda
pesados das velhas que
foram suas donas noutros
anos longínquos sem se
saber já como rezar

escrever-se-á no chão com
a cana verde
há-de se esperar uma eternidade
por quem demora
convém sempre saber esperar
por quem demora

pois o pão dura na despensa
para que se não morra
à fome.

15.2.15

factura simplificada

precisava de um manual para fazer amigos. de um
coração que se aquecesse dentro de água, agora
que é inverno e chove e as imagens se repetem,
e são só as árvores na vergonha da nudez, o
céu escuro, o céu da boca ferido, as pessoas
a compensar a falta de roupa das árvores. as
pessoas a compensar, sempre a compensar. um cora-
ção que aqueça dentro da água do corpo, que
aqueça a água do corpo, que ferva na água,
que mate os peixes e as tartarugas e as
estrelas-do-mar que vivem na água do corpo,
animais que lidam mal com temperaturas
elevadas. e quando falar, direi peixes e
tartarugas e estrelas-do-mar mortos, cadáveres
do calor do coração. e os amigos
terão o que comer.

8.1.15

dentes

abre devagar a boca como se te
interessasse beijar-me, como se
acreditasses que é possível que
nos beijemos apesar de tantos
quilómetros, de tanto ar com coisas
pelo meio. quando te lembrares
de mim envia-me uma árvore,
dá-lhe um nome e envia-ma pelo
correio, com aviso de recepção,
enche-a de palavras e de gestos
ternos. pendura-me uma centopeia
na orelha quando falares, muitas
vezes lembro-me de ti de um modo
esquisito, como se o amor tivesse
acabado, muitas vezes somos
um par de animais demasiado
humanos para nos ralarmos com
qualquer coisa mais do que só
a fricção geométrica dos corpos, por
vezes bebemos demais e fingimos
de forma insuficiente que isso
chega. as minhas mãos não
chegam, não atravessam quilómetros,
não rasgam o silêncio quando a tua
boca ri muito alto longe daqui.
desenhei-te um cão numa folha
quadriculada, deve chegar um dia destes.

7.1.15

Andróide

viveria num sítio urbanizado mas não
em excesso e operaria uma editora de
poesia (em minúscula) e iria aos cafés e
às tascas porque a vida, ao fim e ao
cabo, é
ir a cafés e a tascas e a boticas e a
mini-mercados e a restaurantes e
a casas de pasto. rodear-me-ia de velhos
e de coisas antigas, ouviria ópera no
barbeiro quando, de seis em seis meses,
fosse sendo altura de cortar o cabelo.
"não mexa na barba, um editor de
poesia deve ter barba." o barbeiro
concordaria, "todos os homens deveriam
ter barba", e baptizar-me-ia com
pó-de-talco, o meu crânio um
rabo assado de bebé, mas noutra
extremidade do corpo; sacudiria
os cabelos e as palavras do mesmo
modo que as mulheres sacudiam o
cascabulho dos pêros do seu colo
para o chão e,  de seguida, para dentro das
bocas dos animais.
habitar um lado de vida mais perto do
que importa, preferencialmente com dinheiro
bastante para tabaco e café.

2.1.15

elefante marinho

com as unhas cortadas que deixei pelo
chão e no lixo ao longo dos anos
vamos construir um navio uma nau
e morrer desidratados no meio do
oceano atlântico os corpos secos ao
sol no convés comida para alba-
trozes e gaivotas os olhos vazios
sonhando com papagaios-do-mar
e baleias-de-bossa cantando para
adormecer os seus recém-nascidos.