28.12.12

o manidade

a televisão a desperdiçar-me
as noites, a saliva no braço do
sofá diz-me "sono" (grita-me
"SONO") mas a incapacidade
de fazer o que quer que seja
porque esta era é uma era de
anti-depressivos e de televisão
e de distância. as mãos lavadas
seis vezes com água quente
porque faz frio e porque prefiro
o cheiro do sabonete de
glicerina ao cheiro do tabaco -
nas mãos cansa o tabaco.
a televisão enfia-me anjos
electrónicos/eléctricos pelos
olhos dentro e o tabaco
enfia-me pregos de uma
morte minúscula nos pulmões
nas veias nas artérias na
electricidade do corpo para
que também eu me torne um
anjo mais próprio mais em
comunhão com as coisas certas.
seiscentos e sessenta e seis
litros de mim são amor.

27.12.12

gregoriano #1: calendário

onde estão os amigos que o telefone e as cartas
esconderam? os que se furtam à companhia e às
palavras, os que desaparecem para lá de uma
cortina pesada de mofo e de pó? a sua voz, um
ruído de antenas, de insectos, limpa-pára-brisas
velhos em pára-brisas ainda mais velhos. chega-se
à noite e os amigos falam de sob a água, com a
garganta inflamada de sangue e de memórias,
com os dentes sujos de cinza e de terra, com os
dedos a tocar em urzes e silvas secas. não se
percebe o que dizem, os candeeiros têm uma voz
melhor, mais capaz. os candeeiros passam por
cima das metáforas, iluminam, à noite, mas os
amigos desaparecem e não fazem nada, ouvem-se
e são cada vez mais ténues, mais distantes. os
amigos que desapareceram como formigas, dentro
de buracos no chão, para onde se dirigiram? para
longe, para um país mais próprio, onde toda a gente
caminha a olhar de cabeça erguida, como estátuas,
exemplos de cidadania, bichos amestrados que
se sabem comportar uns com os outros. os amigos
adoeceram de tanta saúde, de tanto propósito,
os telefones morrem, o papel para cartas desaparece
no meio da humidade da casa, dentro de caixas e
de gavetas. os amigos desapareceram todos
para o interior de igrejas em ruínas. os amigos
eram ruínas.

ra as

anseio pelos teus lábios de água e
ar porque o meu peito e a
minha cabeça são uma terra
infértil, um chão seco,
mas o teu corpo é uma seara.

ossa

(é mais fácil falar dos mortos
porque os mortos não respondem
ou quando o fazem só respondem
o que queremos que respondam.
é mais fácil falar dos mortos
para que quando os vivos morrem
possamos falar deles como se
sempre os tivéssemos acarinhado
e amado muito em vida.)

20.12.12

tarântula em formaldeído

desposa-me amanhã num ninho de mar e
de cabelo sujo. estiquemos o cabelo, à
luz, como um filme, estamos tão tarde,
nus, a árvore do conhecimento está
no meio, a piça está no meio
mas a cona está tapada por cabelo e,
dessa forma, é precisa luz. gosto de
olhos verdes como maçãs ácidas.

11.12.12

cujo mistério

tem as metáforas que quiseres ter, as imagens, os
frutos.
os dedos estão em baixo
e tocam.
(assim.)

5.12.12

hibisco

o poema assim pequeno porque o século
XXI tão rápido e imediato e convém
acompanhar os tempos - ultrapassar os
tempos - e porque assim o poema
minúsculo
pronto
próprio
a ser consumido no autocarro em menos
de cinco minutos. mas que rebente
de luz e de sombras e de mundo
nas costelas.

Adília:

Sinto falta de poesia
a meio do dia.

(engulo o ângulo
obtuso)

4.12.12

flores

"a tua poesia lembra-me a do Jorge de Sousa Braga",
diz a rapariga, no meio do baton, com os
auscultadores em intervalo e os olhos a ver
as coisas que escrevo. o Jorge de Sousa Braga tem,
no entanto, um desalento que me escapa,
o Jorge de Sousa Braga tem, no entanto,
no desalento que me escapa, a capacidade
de fabricar um carinho que me é alheio.
o Jorge de Sousa Braga é médico e poeta.
eu sou só.

3.12.12

hino

em homenagem à polissemia ergo um copo
a transbordar de nada - de ar, na verdade.
o poeta está no social e o social está no
poeta e, à falta de dinheiro, "o vil" coiso,
resta erguer taças de nada, brindar com
taças cheias de nada, de trabalhos de zero
horas semanais, dos programas televisivos
que nos empobrecem tanto mais que o
não-emprego. consumamos as cinzas do
que sobra, que é pouco. façamos a
psicanálise disto: a mãe, de pernas abertas,
na marquesa, à espera. os sonhos em
que garrafas são pilas e nunca só
garrafas porque só garrafas. as cinzas
ainda quentes porque, ao menos, o
amor.

27.11.12

adereço

tenho de pôr os óculos
e endireitar-me na cadeira
antes e só escrevo depois.
o que escrevo são os
óculos, a cadeira, a música
consistentemente
irritante mas a contar para
estatísticas e, portanto,
constante e impositiva.
a minha boca cheira a
mãos que caminharam
sobre a língua, a dedos
que se enfiaram nos
sexos mais profundos, mais
secretos das mulheres.
a álcool.

26.11.12

os pés seguros

se o meu corpo
se abrisse como
uma casca
quente
quando tens
frio à noite
e te
protegesse

meu amor

seria dessa
forma.

24.11.12

cabo

(papá: ainda temos tempo de dar as mãos
no café em frente ao mar e ver as ilhas
no horizonte e acender cigarros atrás
de cigarros [o que se esconde atrás
dos cigarros? o que faz com que os
cigarros atrás de cigarros nos façam
sobreviver aos dias carregados de
nuvens e de lágrimas e ao céu nocturno
sem estrelas?] e beber copos de
brandy e depois dos estalidos com
a língua ["o prazer disto!", dizes,
fechando os olhos] abrir a boca
para "isto é o whisky dos pobres"
e ser o whisky dos pobres em frente
ao mar com os cigarros a secar-nos
os dentes e o oceano todo cinzento
da cor das nuvens ainda temos tempo
de criar raízes e de dar a mão já
adultos e ambas as mãos já mais
ásperas do que quando eras já
adulto mas eu ainda não e tinha
medo nas alturas em que te aproximavas
da orla das falésias porque podias
cair e sabemos os dois que o mar
não vomita os corpos com tanta
facilidade como se vê nos filmes e
talvez aparecesses nas ilhas
talvez o mar te cuspisse nas ilhas e
nesse caso nunca mais te via quando
ainda não era adulto mas tu já
tinha medo que caísses ao te aproximares
da orla das falésias porque a gravidade
e o vento e, papá, hoje ainda temos
tempo de segurar as mãos um do outro
porque a ferrugem do teu sangue
está dentro de mim e já sou adulto
mas ainda tenho medo que caias.)

Loyola

tenho os pés
frios dentro dos
sapatos e tenho
os sapatos
frios fora
dos pés. os
sapatos são
castanhos e
podiam aparecer
sós num vídeo
na televisão às
três e doze
da manhã
quando não
se dorme e
o som do planeta
mas mais o som
imediato do planeta
à nossa distância
assemelha-se a anjos
que recolhem
pálpebras
em cestas de vime
prateadas
tenho os livros
carregados de bichos
prateados que se
desfazem num pó
são insectos
são anjos
beijei a mulher
que amo antes
de voltar para casa
e o meu joelho
direito
está congelado.

22.11.12

verbo: descascar

não vou estar em lado nenhum, dia vinte e
sete. a vizinha do andar de cima tem duas
cuecas a secar à janela, sai para o
emprego todos os dias à mesma hora,
geme todos os dias à mesma hora,
vê o noticiário todos os dias à mesma
hora. a vizinha do andar de cima
ostenta uma qualidade de quem é
alheio mas, para si mesma, é
quotidiana, e as cuecas penduradas
são só as cuecas a secar à janela,
não são nenhuma afirmação de
feminilidade. mas para quem passa
ou para quem se senta à janela,
as cuecas da vizinha do andar
de cima são bandeiras num jogo
onde ela afirma ancas, cheiro,
coisas vermelhas que correm em
sítios escuros, e os machos sabem
que poderiam ser capazes
de fornicar a vizinha do andar de cima.
ainda começo poemas com
"diz-me", "responde-me", "ensina-me",
porque continuo a preferir que, a
estar errado, o esteja com a
verdade dos outros.

20.11.12

banho maria

o minério que compõe o coração, as entranhas,
é de um cobre sujo, uma película de cinzas,
por cima, talvez.

14.11.12

mãos feridas

repara que os poemas que me deste
os poemas que me deixaste
por papéis e por extensões mais
ou menos longas de pele e de
tempo são jogos da forca e
palavras. e não deixam de ser
os melhores poemas de sempre.
que nem notas onde as
tuas mãos tocam. ou quando, no
carro, te apercebes de que o
céu está diferente no sítio onde
toca nas árvores.

27.10.12

deste-me um beijo
mas, na verdade,
deste-me uma esponja
e nem sequer dessas
dos supermercados,
úteis, para que tomemos
banho mais ou menos
com auxílio. uma
esponja ainda viva,
no fundo do mar,
bonita e a cumprir a
sua função, incluída no
ecossistema. mas inútil,
em termos práticos. e
relembra-me que só
vivemos em termos práticos,
se, por acaso, me esqueço.

23.10.12

nuvens como napperons

cheiro a tabaco e cheiro o
tabaco na roupa e nas mãos e
porque e
como sinto que cheiro a tabaco
na roupa, no casaco, nas luvas,
na camisa, nas mãos, na ponta
dos dedos, sei que cheiro imenso
a tabaco. e ontem bebi whisky
e conversei com um amigo mas
hoje, quando arroto, arroto só
o sabor do whisky, nunca nada
do meu amigo. sei, portanto,
que bebi whisky, mas não posso
ter a certeza de ter conversado
com um amigo. na ponta
dos dedos só cheira a tabaco e
no casaco. para a semana o
calendário inclui outro amigo mas
podemos ambos morrer até lá.

no café da rotunda

a gente esperou tanto tempo
pela tosta e, devido à constipação,
nem sequer pôde desfrutar do cheiro
a pão torrado na aproximação
do inverno. e foi triste,
porque era um daqueles dias
em que a fome não era tanto
uma coisa estomacal, como
uma necessidade de
preencher sensações.

19.10.12

Flaubert é um réptil acinzentado no deserto

suas sinzas, meu amigo, suas sinzas
cepultadas à cabesseira, dentro
deça urna extranha, suas sinzas
seus dexpojos, o que sobra de
ci, meu caro. não amo a sua
sintaze, o seu microverso
linguístico, amo, contudo, o
que ficou de ci, à cabesseira da
cama, rogo-lhe todas as noites
para que ce lembre de mim
onde quer que esteja, ce estiver
cequer nalgum cítio. olho para
ci dentro de uma urna extranha,
meu amigo, meu caro, sua
barba agreciva nos retratos,
ceu indicador impositivo,
sua voz como hoje, "Não escrevas
coisas destas!"

17.10.12

vinte e sete

creio que esta noite
choveu. e o meu
indicador esquerdo
inchou de pus e
de tristeza e de vermelho.

auto-estima

o céu são papilas gustativas que
choram como homens disfuncionais a
correr nus por corredores em chamas

dedos

é já o inverno, notas, porque está
frio e chove, os peixes estão mais
calmos dentro do aquário e as
frutas sobre a mesa são outras,
com outras cores, outras texturas,
a saber diferente das do verão.
e ao fim do dia, quando voltas a
casa, já tens frio. antes das
nove passas pelo chinês e
decides comprar umas luvas
sem dedos, que sempre aliviam
do ar e do vento. setenta e
cinco cêntimos. ninguém,
a não ser nós, está feliz por
causa de chover e de fazer frio,
por teres comprado umas luvas
na loja do chinês. mas isso
não nos interessa, estamos
fechados num círculo de
intimidade, onde a nossa
felicidade é a única coisa
que importa.

15.10.12

dezanove

a esta hora ainda não
é tempo de voltar
para a frente da
torre alta da faculdade
porque não cessam
de existir ali
os meninos
as meninas
da amnistia internacional
e não me apetece
mesmo nada
perder um minuto
com os direitos
humanos.

desidratação

aqui é o princípio: onde os dedos
tocam as costelas. o médico diz
que hiperventilar é um verbo
poeticamente muito bom. os
pacientes escutam e hiperventilam.
é difícil, com a doença, discernir
qual a carne boa. que bife da
vazia está em condições de
cozinhar, à refeição. onde os dedos
tocam as costelas: aqui é o princípio,
com uma pequena hiperventilação,
diz o médico, que não faz mal,
poeticamente é muito bonito. ao jantar
come-se o bife da vazia, mas a doença
faz com que não se perceba muito bem
se está em condições; no talho
aproveitam-se, querem só vender
o produto e atestam a sua qualidade,
ainda que não exista. o bife da vazia está
seco e sabe a quase nada, sabe a
crianças que choram sem saber porquê.
o princípio é aqui: os dedos, onde tocam
nas costelas. as costelas estão magras,
sentem-se à pele, num sítio que é vegetal,
também, a flor da pele, uma camélia.
e de noite o sexo murcho e negro
entre as pernas, a apontar para um
espelho e para uma inutilidade. mas
as costelas, onde tocam os dedos:
aqui é o princípio.

10.10.12

internet

"sou amigo da minha terra natal no facebook,
toco piano, canto, não fumo, não bebo, excepto em
ocasiões sociais, sou completamente contra
a poligamia porque a vida me tratou mal ao
longo dos anos e não pretendo ser traído de
novo."

a minha terra natal não pode ser medida
geograficamente. a minha terra natal não
é sequer a minha língua nem a minha linguagem.
começa onde começam os dedos da
mulher que amo e termina quando por
cobardia me apetece morrer enquanto
está tudo bem.
e fumo.
e bebo.
e a vida tratou-me como tratou ao longo
dos anos e não pretendo ser traído,
mas, se for, é possível sempre
nascer noutro local.

convém espicaçar a vida inexistente

recebeste a imagem que te mandei?
era um bêbado a mijar num pomar
de maçãs, à noite, alheio às luzes
dos carros que passavam. era só
para saber se sabias o nome do
pintor, só para me dizeres o nome
do pintor, que deve estar a morrer
à fome, sem sequer um pomar de
maçãs de onde roubar fruta.

שרה

(como sempre,) para a Sara

se a minha boca por vezes não te desse
escamas ou espinhas, se te desse sempre
braços e animais e frutos. se tivesse poemas
grandes para te escrever tinha também oportunidade
de com tantos floreados não falar de ti e
de mim e, assim, falar só de um poema
que não seria um poema teu nem meu nem
nada. mas este é. ainda que às vezes com
escamas e com um ou outro lixo.

suspensão respiratória

os pratos estão sempre cheios. os
copos de absinto. diz-se "cornucópia",
choram quando vêem quadros de
fatias de queijo, choram quando
vêm. falam e gesticulam e mexem-se.
olham. observam os pratos e
as mãos que levam e trazem os
pratos e choram quando as mãos
vêm com os pratos e os copos.
as mãos vêm. e eles choram.

9.10.12

se puder ser

houve-me
quando
falo.

nota: contém lamechice e auto-comiseração em doses consideráveis

se morrer sozinho
por favor
que não me importe
de morrer sozinho.
que a minha caligrafia
não precise de ser
bonita para que morrer
sozinho custe menos.
que não me custe
morrer sozinho.

8.10.12

invólucro dérmico

em alguns anos o meu pai usou
roupa de mulher às escondidas.
punha baton em frente ao
espelho do aparador, no quarto,
com interesse e deleite, a magia
de uns lábios de ferrugem que,
de súbito, eram substituídos
por uns novos, de sangue e de
carne, que faziam com que
os homens pulsassem de
nervos e de hormonas e de
linfa.
em alguns anos o meu pai foi
uma mulher muito feia, com
pêlos que saíam de entre
as malhas das meias de rede.

partíamos tudo à paulada, à pedrada

este homem masca tabaco, é o seu propósito.
nas tardes de setembro, masca tabaco em frente
às damas e aos tabuleiros que, sendo de xadrez,
são também de damas. não existem peças de
xadrez porque o xadrez é mais complexo
e estes lugares não albergam espaço para
que se aprenda a jogar xadrez. e mascar tabaco
não vai bem com xadrez nem com chá. é
para acompanhar biscas do três, lerpas, dominó,
bagaço, enxames de moscas. porque nas
tardes de setembro já não é como era dantes,
é o tempo a mudar, em outubro ainda se vêem
pessoas na praia, na nossa altura não era assim,
mesmo que não saibamos onde está a nossa altura,
para o governo a nossa altura é 1,77m, mesmo que
na nossa altura ainda se vissem pessoas na praia em
outubro e o calor não desaparecesse só porque no
calendário passou de um dia para o outro e
é outono. nas vindimas come-se pão saloio com
marmelada e a marmelada fica viscosa nos
dedos porque escapa por entre os buracos nas
fatias do pão. ninguém sabe jogar xadrez, mas
ao menos mascam tabaco - este homem masca
tabaco -, à volta os sonhos todos podem
estar quebrados mas não interessa, na televisão
celebra-se um feriado num país estrangeiro,
as damas não saem do lugar, ontem houve uma
equipa de futebol que perdeu um jogo, os
sacos de água pendurados à porta não
afugentam as moscas.

narcolepsia e um piano desafinado

talvez devesse primeiro
perceber que o amor
são uma data de frases
sem sentido - o amor são
uma data de frases e nenhuma
delas leva a lado
nenhum. talvez, com a voz
a cheirar a vinho, a aguardente,
devesse imaginar-nos sob
um candeeiro, dentro de um
filme, dentro de um livro,
com uma chuva, um nevoeiro,
e dizer-te "não te sei amar pouco,
não sei ficar a teu lado se não
sabes dizer que me amas, se não
sabes que para sempre existe".
nos livros podemos dar-nos
ao luxo da injustiça, podemos
imaginar que o amor é
isto ou isso ou
assim. talvez devesse primeiro
apanhar insectos com os dentes
e guardá-los em frascos,
a boiar numa solução aquosa
em que grande parte seria
alcoól etílico, dedicar-me a
estudar os números e os corpos,
as cabeças, "isso és tu a compensar
porque, em pequeno, não te deram figos
quando pediste, não te deram o colo
necessário, não te foderam
no cu."
primeiro perceber que a vida
arranha menos quando vivemos
menos porque o amor - esse
animal - são só frases e nem
sequer querem dizer nada.
morder insectos e tirar restos de
asas de entre os dentes, hoje
não sei amar menos e o sol
incomoda-me os braços.

Mafalda

há mais poesia em sair de casa
de manhã numa cidade estranha
com a roupa de há três dias e
perfume de mulher do que em falar
das vicissitudes do mundo com muitos
estrangeirismos.

urtigas para esfoliação

queixo-me da palavra "volátil"
porque o teu queixo não é
volátil, os meus lábios sim,
quando embatem no teu
queixo e, por trás, os dentes,
também, se preenchem de
um fogo sanguíneo. a minha
pila é volátil se o teu queixo ou
os teus lábios entreabertos
de onde a tua respiração como
um peixe contra a minha pele.

2.10.12

1978

tenho em conta os anos que passaram.
não há nenhum botão onde se carregue,
existencialmente falando, para, por
exemplo, baixar o volume quando
se grita um ruído que poderia ser um
nome, poderia ser o meu nome,
mas soa só a crude, a gaivotas
expirando nas margens da água
atlântica, cobertas de preto e de
visco, na televisão. mas ninguém
tem pena dos nomes sujos de petróleo
num oceano de barulho e de pétalas,
é mais fácil permitir a compaixão
por gaivotas e peixes e outros animais,
porque, a esses, vêem-se-lhes os
olhos, tudo morto ou num pânico
de oxigénio. mas no vácuo dos
ossos também há marés negras e
também cheira a ferrugem e a sal.

16.9.12

mon coeur est comme un arbre

não há como
espantar moscas
ou passar o tempo
na província
remota

senão através
de escrever isto
em português
no tradutor
online e apreciar como
será
em gujarati
આ.

estudo de cores e formas

os dentes estão cravados no chão
e o chão sabe a cinza oblíqua
na língua que, por uma questão
de proximidade, pode saborear o
chão - consequentemente, o sabor a
cinza do chão, oblíquo, como que
fornos onde se incineraram borboletas.

um

a rebentação do mar
(isto é, as tuas costas
onde desembocam as
pernas)
ensurdece-me depressa.
a tua boca existe para
calar a minha boca,
para completar os meus
lábios e os meus dentes,
falo a tua língua, a
tua língua ensurdece-me
para que não pense em
feridas, em pus, em
linfa.
os dedos tornam-se estames
musicais de flores nervosas.