20.12.15

não sei se és tu nas fotografias que
às vezes aparecem, que outras pessoas
me trazem sem querer

quem me dera que fosses
quem me dera que não fosses

não sei onde estás ou onde tocas mas
procuro-te na improbabilidade
das fotografias dos outros como
se ainda fôssemos alguma coisa
como se ainda pudéssemos ser
qualquer coisa.

13.12.15

electrónica

o relógio em dezembro à noite incessante mas lento
debaixo das escadas com o tempo todo para não fazer
nada a atirar pedras de carvão para dentro de vasos
sem terra a pensar nos incêndios que se atearam há
tantos meses a pensar na morte de pavões dentro de
contentores uns guinchos tristes de mamífero nos contentores
aves soando a mamíferos por causa das úlceras e da
morte
é tão mais fácil falar da morte tão mais simples tão mais
bonito no contexto poético da depressão que todos procuram
ler

a minha filha é livre de morrer abraçada a um pavão num
contentor de ser encontrada pelos homens às cinco da manhã
no meio de lingerie usada e jornais de há tantos meses

a minha filha nua
um copo de água
uma aspirina
o lado esquerdo
do corpo
todo
apanhado
debaixo das escadas com o tempo todo para não fazer
nada para além de atirar pedras de carvão contra os pavões
rir muito alto bater com as mãos nas paredes cantar
coisas de que já ninguém se lembra
inventar histórias às velhas e acreditar em todas as mentiras
que se dizem

a minha filha na água
com uma aspirina e os
pavões
chorando petróleo
guinchando
na solidão
no tempo
no lugar
no modo

9.12.15

cabo formado por uma elevada montanha

o café está queimado na língua e não
acalma nem abafa o sabor
do tabaco. é só café, só um modo
cansado de falar das coisas,
das feições da filha da
cigana tão iguais às
da filha da
outra. o café queimado reúne-nos
a todos, o tabaco,
a vida a ir para esta merda.

8.12.15

cattleya mossiae

j.

num lugar onde te lembres do pó que comemos
mas também das laranjas
a que chegavas a cheirar na escola e à conta
das quais os miúdos te apontavam e riam
sem que soubessem
pois ninguém sabia ainda
a música luminosa que te nasceria dos olhos
e das mãos e das palavras
ainda que hoje sejam ditas numa outra direcção

num lugar onde caminhes sozinha e já não te
veja nem reflectida nas costas de uma colher de
chá
e não me ouças por necessidade de esconder os
ouvidos à angústia

sempre num lugar onde o amor na água com os peixes
desorientados
e as minhas unhas arranhem areia no fundo do mar
em busca de laranjas ou de palavras que ainda cheguem
até ti mesmo que ténues
farrapos de uma voz animal
com que nos embalámos tantos dias dentro de tantos meses

olha as feridas abertas tão férteis contra os vidros
num lugar onde a memória não se apaga
uma estrela longínqua morta há milénios mas
cuja luz
ainda
até ao fim de parágrafo de um ser humano

3.12.15

quadrado #8: telefone

T.

lavo as mãos com a água mais fria que existe; és uma imagem distante,
um rio de sangue menstrual em cima da cabeça de uma boneca, no chão
de uma mata, tudo misturado com folhas e terra. vejo as tuas pernas
despidas ao longe, de trás, nas fotografias. vejo um cancro de luz
a destruir-me o tórax a partir de dentro, tenho fotografias com que o
atestar. a preto e branco.
lavo a fruta com a água mais fria que existe, levo-ta à boca com os dedos
mais gastos que tenho, podemos comungar isto, pelo menos: a menstruação
nas fotografias, os frutos, os cabelos, as pernas, as nádegas.
enxaguo as palavras no gelo da água; conto-as, estendo-as ao sol, seco-as
e só depois tas entrego, deito-as no teu colo esperando que importem,
que tudo isto sirva um desígnio, um propósito.
caminho no chão onde fotografaste a cabeça de uma boneca sobre as folhas,
ando sobre a memória do sangue menstrual, espero que alguma
estrada me leve até onde estejas; gasto todo o tabaco antes do tempo,
o tempo, o tabaco
deviam ser gastos onde as tuas mãos lavadas levassem à boca um copo
de leite sem lactose.

1.12.15

when the devil calls I'm gonna ride that train

quatro do onze, dezoito do onze, dezoito anos, dezoito buracos num
jogo de golfe, dois homens a ler poemas do William Carlos
Williams em voz alta, bêbados, que a poesia é para bêbados.
dezoito copos de aguardente, dezoito copos de bebedeira,
nenhum fígado.