4.9.13

recepção #8

vou no 3, a ler Anton Tchekhov, O Duelo,
no capítulo três, e é fácil e não é fácil.
estou doente, dói-me a cabeça de tantos
mecanismos que são necessários, estou doente
de amor noutra época e nunca agora,
penso na doença, vejo-a, está dentro dos
dentes e dói, o Tchekhov está no capítulo
três, não te esqueças, fechado sob o
cotovelo esquerdo - o cotovelo não está doente,
só a cabeça, a boca, o fígado. tantos
mecanismos necessários, as pulseiras não me
ajudam a sobreviver e no entanto não
saio de casa sem elas. era capaz de amar,
acredito que era capaz de amar; talvez o
melhor fosse não o saber, ter só uma
doença e esperar numa cadeira com o
Tchekhov fechado no colo, a doença dos
russos nos dentes, queria estar doente debaixo
de água por minutos, sozinho, queixar-me
por estar a morrer, ao menos era capaz
de amar no escuro, numa cadeira, confortavelmente
sentado sem precisar de comer, de falar.
"valho sozinho, todos devíamos aprender o valor
de nós sozinhos no amor de nós mesmos,
amar os outros é um desperdício." era capaz
de amar uma mulher sem me cansar, nunca
me cansei, mas agora estou doente, dói-me a
cabeça e era agradável que os outros se calassem.

seráfica

agora, que dormimos, arrastemos a intempérie
nas plantas dos pés. sabemos o lugar da cassiopeia
e de orion no céu, cartografemos, pois, as
estrelas; temos estes corpos que amadurecem
mas não duram um milénio, cobrimo-los
de gaze e de ervas secas. decoramos o
sítio das estrelas e dos oceanos, dos rios. e
dormimos, que o corpo pede, e dói-nos a
cabeça. arrastemos o vento e a chuva
nos pés, o lugar da intempérie é lá fora; agora
que dormimos e sabemos o nosso nome, onde
ficam os mares, as ravinas, os precipícios.
os nossos corpos amadurecem e crescem
para nada, quanto custa sermos só isto na
ingenuidade tremenda, na ignorância,
conhecemos o céu, o sítio das coisas,
a arquitectura da solidão e a filosofia e
o amor, onde tapar as feridas com a gaze
e onde aplicar os lábios. agora, que dormimos,
chamamos as coisas pelos nomes,
caminhamos nus em direcção aos rios
desconhecidos, evitamos as ervas secas,
os cavalos correm no escuro, esmagam-nos
o tórax. arrastemos a cartografia das cidades
das estrelas dos mares.

clorofluorcarbono

é tão mais difícil
o não-silêncio
do campo
do que o ruído
na cidade

porque os cães
as cigarras
os insectos
estão vivos e
quando falam
quando gritam
isso magoa
como um ponto
de interrogação
de um amigo
longe

mas nas cidades
habituamo-nos
aos comboios
aos aviões
aos carros
nas rotundas
às quatro da
manhã.

porque os aviões
os carros
os comboios
estão mortos
e fazem barulho
sem que digam
nada.

3.9.13

revelação

ao meu irmão factual

somos a mesma fibra
temos o mesmo cheiro
na pele
mas como um de nós
subitamente tão mais
útil?
e porque dói tanto
a dor do outro,
quando apenas?
não te vás
embora
nunca
(ainda que
tantas vezes)

luques

o tabaco há-de me corroer
como um ácido gasoso
hei-de perder as pernas
os braços
primeiro os dedos dos pés
já tenho uma sensação esquisita
uma hipocondria
quando coço os calcanhares
e por todo o pé uma
gangrena em formação
(sei que uma gangrena em
formação, ainda apenas um
projecto)

o cancro há-de me conhecer
o nome e há-de me tocar
por dentro do corpo
dos pulmões aos ossos
ao pâncreas
há-de salientar a minha
inutilidade
a minha
incapacidade

e vai ser tão luminoso
no escuro das unhas
nos dedos dos pés
que forem ficando pelo
caminho
apodrecendo
fertilizando o chão
para que nasçam
arbustos que ardam.