31.7.15

os fumadores morrem prematuramente

a poesia alinhada à direita, um saco, um tio ostomizado, vagaroso, a ter de aprender a viver assim; i.e., a cagar de modo automático para dentro de um saco; a ter de aprender a lidar com a flatulência incontinente nos espaços públicos, a ler poemas nos cafés, alinhados à direita, tão ridículos, pensa, tão estúpidos

um destes dias devia aprender a tocar guitarra
ou piano
devia olhar para os livros
devia ler os livros
sair de casa

alinhar a poesia à direita, o musgo, o húmus da poesia todo
alinhado à direita
assim, longe, separado do resto, do usual, vagaroso, ostomizado, a ter de aprender a viver assim, vai ao banco e diz-lhes que estás doente da cabeça (talvez estejas, talvez estejamos todos, não é?), uma cefaleia intocável, uma doença metafísica, na cabeça, contida no espaço físico da cabeça porque quando pensamos sentimos o pensamento na cabeça, atrás dos olhos, debaixo do cabelo, no meio das orelhas. não é?

um destes dias devia sair à rua
bater em alguém e
fugir correr muito correr
muito depressa até
cair de exaustão
esperar que nunca me apanhassem

24.7.15

dez pães

onde quer que estejas por favor não demores pois urge que venhas
há uma caixa com ossos enterrada no quintal das traseiras à
espera que lhe pegue fogo que a incendeie para que depois nos possamos
esquecer dela; sempre apaixonado só isto; não demores de onde vens
com meia dúzia de peixes para o jantar com meia dúzia de urzes de cardos
secos com duas ou três fatias de pão vens de uma ilha vens de uma escada
de uma palavra mas urge que não demores mais do que o necessário
pois o fogo não se ateia sozinho os dedos não se entrelaçam por si
só e a saliva não irriga a língua alheia alienígena

uma caixa de sapatos enterrada não tem propósito longe de um par de pés

16.7.15

sova de cinto

anos oitenta, quarto com vista para a praia, sete
e quarenta e cinco da tarde, junho. tenho a
televisão ligada, que vai começar o telejornal
entretanto; tenho a rádio ligada mas não ouço
nada. há duas gaivotas pousadas no parapeito da
janela, um carro parado em frente ao café
do outro lado da rua há mais de dois dias.
encho um copo com água da torneira, vem
a saber a lixívia porque é terça-feira e a
água sabe sempre mais a lixívia à terça. é
só para tomar um ben-u-ron, um panadol,
qualquer merda que me alivie a cabeça dos
anos oitenta, das gaivotas, das mulheres que
foram deixando peças de roupa pela minha casa.

3.7.15

maria

tão longe, a lituânia, tão escura, tão pesada, um primo
enviando cartas desde lá, as cartas demorando tanto tempo
a chegar, passam pelas mãos de tanta gente, passam no
esófago e no estômago e nos intestinos das máquinas e
nas asas dos pássaros e caem na caixa do correio;

um primo na lituânia escrevendo, falando, «aqui está
tudo bem, temos pão, temos água, temos amor, nas ruas
existem pessoas, as pessoas que estão na rua não nos
vêem -- ninguém vê ninguém --, comemos às nove da noite,
comemos pão, bebemos água, a luz falta quando faz muito
calor ou muito frio, sentimos a tua falta, espero que a presente
te encontre bem; a tia manda beijinhos.» a tia na lituânia,
tão pesada, já não se lembra da idade em que foi nova
e dançou com homens que não eram o tio, em bailes
e em casas e em festas e em becos, mas essa era uma
dança diferente que enrubesce no rosto (sentimos a tua
falta, a falta do calor das tuas mãos buscando o calor
do meu corpo abaixo da cintura, no escuro da lituânia,
no peso do quarto, atentos aos barulhos do corredor,
aos passos do tio pela casa, com a porta entreaberta
e os lábios)

os lábios tão pesados, os frutos tão escuros, o país tão longe
as mãos as nádegas as mamas a língua
em riste
na pele na boca

tão longe daqui, tão longe, tão longe, tão longe
-- meu deus, há tanto tempo --
(ponto de exclamação)