5.6.13

croft em cálice morno

à uma da tarde começam os comboios para
são martinho do porto onde mora um amigo
ainda em 1967. em junho de mil novecentos e
sessenta e sete o calor da uma da tarde (treze
horas) incomoda as senhoras que esperam de
pé pelo comboio e se vão abanando com
jornais e chapéus e leques e uma pergunta-me
"não tem calor?" e outra afirma que está tanto
calor. o meu amigo tem os óculos na ponta do
nariz em são martinho do porto sentado à janela
de sua casa a ler Hemingway. a ler um livro do
Hemingway que ele escreveu quando tinha só
bigode ainda não a barba completa. em 1967
em são martinho do porto o Hemingway já tinha
morrido há seis anos. o meu amigo não tinha barba
e fumava muito. nessa altura falava-se pouco do
cancro dos pulmões e mesmo que se falasse
muito do cancro dos pulmões o meu amigo
não quereria saber porque ao menos quando fumava
não chorava ao menos quando fumava não
lhe fugia a cabeça para coisas e sentimentos
tristes. porque a cabeça das pessoas fugia muito
para coisas tristes à uma da tarde em são martinho
do porto em mil novecentos e sessenta e sete.
o Hemingway matou-se em julho de 1961. eu e o
meu amigo em são martinho do porto às três e
quinze da tarde ainda estamos vivos e a comer
pastéis de nata enquanto bebemos café em frente
à praia. quanto ao futuro. quanto ao futuro. que
se foda. hoje não se fala de cancro dos pulmões.

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