25.3.15

hebraica

«quem morre nunca parte, quem parte morre sempre»



atravessaste um degrau, uma idade, uma porta dessas
casas abandonadas cuja vida permanece no vento e
nas mudanças diárias da luz do sol nas paredes e no
soalho;

atravessámos uma morte, vê: devíamos ter morrido,
devíamos ter dançado mas não, nem morremos nem
dançámos, tomámos comprimidos, fizémos tatuagens,
operações aos olhos, amámos, fingimos ter conjugado
uma gramática de amor, sobretudo, tirámos fotografias
dos nossos corpos em descanso e chegámos um
ao outro em silêncio e em segredo quando nunca
devíamos ter chegado, devíamos só ter adormecido,
ter partido para muito longe e ter esquecido

a vida um do outro
para que não nos magoemos mais nas lâminas no sangue
no cheiro a relva dos cabelos cortados da sujidade
dos corpos que a água não lava porque a água
já não existe como existia dantes onde um
abraço longo

uma estrela acesa na garganta quando falávamos embora
agora
devêssemos ter morrido como lagartixas a quem se calca
a cabeça contra o cimento no calor da primavera
devíamos ter calcado a cabeça um do outro contra o
chão contra o cimento para que não doesse
termos de continuar vivos termos de
fingir
comer a morte um do outro sem apetite

enroscar lâmpadas nos casquilhos ter de aturar os outros
dando conselhos ter de mentir ter de omitir ter de fingir
ligar mas pensar apenas no movimento helicoidal dos
filamentos das lâmpadas e continuar
a fazer generalizações continuar a odiar
pessoas continuar
a cometer os mesmos erros sempre

e dormir longe de toda a gente quase acreditando
que é melhor assim.

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