21.8.13

animal: a cabra

à Maria

conheço uma mulher só de fotografias e de poemas. é veterinária
e diz ser de Córdoba e quando escreve tem o amarelo da Andaluzia
nas palavras. vejo-a nas fotografias e é bonita ou se calhar
é por causa das palavras e dos poetas. e é do cabelo e dos
olhos e da pele e do sol. ela fala de cidades, há um sítio que criou
só para as cidades; fala em espanhol e atende pessoas e animais
em espanhol, agora que trabalha (conheço uma mulher bonita
de Córdoba, é veterinária; conheço-a só de fotografias e de
noite olho para o tecto do quarto e penso como será a sua
voz quando fala com os animais). ela escreve e quando escreve
não nota mas eu noto toda a Andaluzia e os animais selvagens
que o sol amansa, dormindo à sombra das árvores e das
construções antigas. às vezes penso nesta mulher espanhola
e penso em como é tão bonita nos poemas e nas fotografias
e tenho saudades de uma mulher que conheço apenas
de poemas e de fotografias. e queria dizer-lhe com a garganta
e com a língua e com os dentes e com os lábios e com os
músculos e com as cordas vocais "és tão bonita" ou outro
artifício poético muito autotélico que ela não percebesse;
como quando escreve e arrasta toda a Andaluzia nas palavras
e não o vê. e corre em sonhos no meio dos animais e do pó
e tem uma voz; tem o cabelo e os livros e o sol da Andaluzia
enorme e quente contra as costas. olha: perguntei a um
homem na cidade espanhola junto ao mar, que vivia a uma
rua do porto, se tinha visto um barco atracar e ele batia com
uma caixa de madeira no chão. a caixa estava cheia de parafusos
e moedas antigas, inúteis. ele magoava o chão com a madeira da caixa
e com o ruído do metal. gritou-me que os barcos até podiam
atracar do outro lado do mundo, seria o mesmo para ele.
estava ali à porta de sua casa o dia inteiro, parado, ao sol,
e arrastava-se para dentro sobre uma tábua, o corpo sem
pernas. há um sadismo dentro de mim e ainda bem que
não posso tocar a mulher espanhola que conheço só assim,
não posso corrompê-la nem posso salvá-la de nada. mas
leio-a e vejo-a nas fotografias e ouço-a falando com os animais
no calor. bato com uma caixa de madeira no chão; os barcos
até podiam atracar do outro lado do mundo, era-me igual.

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