13.4.15

espectógrafo

considerei que o sucesso é um prego ferrugento numa parede,
numa casa velha, onde os homens penduram casacos ao fim do dia.
o meu amigo chegou com alface para a salada, comemos
massa com carne frita, bebemos vinho branco porque se me
tinha acabado o tinto, com um certo humor triste fizemos pouco
da situação, "vinho branco é a coisa mais parecida com vinho,
que existe", mas despachámos a garrafa.
ouvimos música ligeira depois do jantar enquanto víamos
os carros e as pessoas, lá em baixo, sentados na varanda;
embora víssemos sempre mais os carros do que as pessoas,
os carros vêem-se melhor ao longe, anunciam-se melhor, num
movimento de luz e som e metal e plástico e vidro e borracha
a respirar poluição nos pulmões;

lemos dois ou três números de Dylan Dog, do Tiziano Sclavi,
e fomos tão burgueses, tão novos-ricos, a conversar sobre banda-desenhada
europeia; depois concluímos que a europa nos cansava imenso e
dissémos que o Dylan Dog era inspirado no Rupert Everett,
que eventualmente protagonizou o filme Dellamorte Dellamore, também
baseado num romance homónimo do Sclavi, falámos de coisas
inócuas mas que nos pareciam cheias de verdade e de força, como
"toda a gente devia ver esse filme e deixar-se mas é de coisas";
"é um dos melhores filmes dos anos 90";
e etc.
perguntou-me se sabia que o Rupert Everett era homossexual e respondi que
sim, quis saber se ele achava que tinha sido difícil para ele fazer
aquelas cenas com a Anna Falchi e disse-me, roçando a indignação,
que "por mais paneleiro que se seja, a Anna Falchi é a Anna Falchi, foda-se!"
depois ficámos calados e acendemos um cigarro, os carros rugiam
na rua e as pessoas eram um sussurro inaudível de órgãos e oxigénio,
irrelevantes, minúsculas; e nós os dois a ter de lidar com a tristeza
aguda e imensa de, por mais heterossexuais que fôssemos, nunca podermos
ser o Rupert Everett no Dellamorte Dellamore, de nunca termos
visto a Anna Falchi nua, em pessoa, de nunca a termos podido beijar.

No comments: