30.4.15

hipocondria

este poema é o pior poema de sempre.
está nu, está oco, e o poema não se
quer oco nem nu, há um certo tipo de
folhagem que se tem de vestir a um
poema, um certo tipo de valor que
tem de se lhe dar. mas este poema não
tem rigorosamente nada, a não ser uma
teimosia muito funda que se confunde
quase com um sussurro de um filme
antigo desses que desapareceram
antes sequer de serem exibidos nos
cinemas e no entanto fala-se dele e
existe sem nunca ter sido visto.
o poema devia ao menos ter uma pessoa
dentro de si que o enchesse de analogias
e de metáforas e de, quanto mais
não fosse, ironia ou um oxímoro
ou dois. um poema que tivesse
sido pensado, prensado, todo ele
edificado em mármore, para as gerações
vindouras se deleitarem à sombra das
suas ameias, para se refugiarem no seu
interior. não se está bem dentro nem
perto deste poema; não é uma árvore
nem um prédio nem um animal nem
um carro, é um poema e nem sequer
um poema muito bom nisso. e se se
corta jorra sangue e o poema olha
e toca e lambe o sangue que lhe sai
do corpo e não entende como, não
entende porquê. um poema devia
ser como uma fazenda, como uma seara,
como um céu sem nuvens; se sangra, se
grita, se chora --

o poema tinha muito boas imagens na cabeça
mas não conseguiu encher-se, não conseguiu
povar-se de nenhuma delas.

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