2.5.13

catarina

devia-te ter amado a boca em torno de um dia
que não acabasse, devia ter-te levado a concertos
noutro tempo, noutra época, e ter-te abrigado
da chuva com o meu casaco. devia ter estado
contigo em silêncio numa sala, rodeados de
móveis escuros e pesados e papel de parede
azul com motivos florais enquanto segurávamos
a mão um do outro com o medo próprio de
quem precisa que o outro não fuja, não morra,
não desapareça repentinamente. devia ter esperado
cinco ou seis meses numa sala, segurando a tua mão,
enquanto nos preparavam uma fotografia, enquanto
construíssem uma fotografia de onde nunca nos
morressem as cores, as veias, a paixão e o carinho.
de perfil, devia-te ter despido e beijado as coxas,
lentamente, devia-me ter alimentado de ti e de
chamar orquídea ao teu sexo, devia ter chamado
cona ao teu sexo e bebê-lo conforme se abrisse
semelhante a uma orquídea, devias ter amado a minha
boca com uma orquídea quente em torno de
um dia que não acabasse, devíamos ter sido
felizes noutra época, noutro tempo, a sair dos
concertos e tu com frio, fugindo da chuva, para que
despisse o meu casaco e to colocasse sobre os
ombros. devíamos ter tido uma casa com uma
despensa onde existissem cestos de vime com
espinhas de peixe e escamas lá dentro, devíamos
ter ferido as costas e as pernas um ao outro
com espinhas de peixe, com ossos de pássaros
mortos, devíamos ter sonhado que dançávamos
com pessoas antigas, passadas, numa sala com
móveis sombrios atrás e papel de parede e cortinas
pesadas e escuras. devia ter amado a tua boca com
a minha boca com as minhas mãos ao redor de um
dia que não acabasse nunca, onde as palavras
chegassem e onde as pessoas jogassem às cartas
em silêncio, devagar, caindo do tecto em direcção ao
chão como penas de pássaros mortos, flutuantes,
com sorrisos de pó e de nada e olhos guardados
em armários escuros. devia ter-te levado a uma
estação de caminho-de-ferro e ter esperado cinco,
seis meses que nos fotografassem, que nos etiquetassem
e que nos arquivassem como numa memória naquele
filme que vimos durante uma matinée de quinta-feira -
em itálico sempre porque um estrangeirismo erudito um
francesismo -, que nos levassem para longe em bolsos,
em barcos a vapor que naufragassem a meio do oceano
para podermos viver eternamente num sítio azul escuro
onde devem pertencer as memórias aquáticas.
devia ter-te oferecido maçãs encarnadas, devia ter-te
pedido um beijo em contra-luz, à noite, perto dos
candeeiros e do quiosque octogonal já fechado, devia
ter-te dado flores. devíamos ter sido como unhas ou
cabelos, vivos depois de morrermos, mesmo que sejam
as únicas coisas mortas, de nós, quando vivemos.

1 comment:

Anonymous said...

Conseguiste criar uma imagem maravilhosa, ou conseguiste levar-me a criar :)