7.2.14

concertina

abro os olhos (dois milímetros, cinco) para ver
coisas, mulheres, para ver que a minha poesia não
sabe nada, não tem noção de como falar, do
que dizer. a poesia é uma outra coisa, escrever
só porque se escreve não adianta de muito, abrir
os olhos para chorar, para pedir bolos na pastelaria,
pastéis de nata, palmiers, ficar sentado ao pé
da livraria com uma esperança ínfima de não
ser indiferente à empregada bonita que vende
livros (vendeu-me um Kafka). a existência cansa,
por isso é melhor que se escreva, que se chore
de um modo mais metafórico, com um café a
arrefecer numa chávena; é preferível encher a vida
de mentiras e de sistemas propícios à sobrevivência:
fazer planos de um curso prático de cozinha,
aprender electrotecnia por correspondência. fingir que
se teve coragem de se dizer à empregada da
livraria que o nosso par de mãos a cheirar a
tabaco está disponível para ela, que os trocos de
que dispomos, ainda, dão para lhe pagar um
café. inventar que faltámos à catequese, às quartas,
que perseguimos répteis nas margens dos rios, que
nunca roubámos dinheiro para comprar casacos.
abro dois milímetros (de dois a cinco) de olhos, de
pálpebras, para olhar para isto, para notar o movimento
dos dedos à procura de palavras sem importância nenhuma,
juntando agramaticalmente tudo e lendo alto a
amigas, depois, na esperança de que chegue para foder.

No comments: