9.6.15

setenta

lamento, então, que na velocidade de viveres tenhas perdido noção de como
a alma se revolve na terra húmida, no calor, no papel, que dos meus olhos
não tenhas tirado nada porque são só olhos banais, castanhos, cansados.
que as minhas mãos violentas e às vezes violetas não te tenham chegado nas
feridas, não te tenham servido para levar comida à boca, para te segurar
no frio do inverno, pouco capazes, pouco masculinas. que a minha voz
se tenha tornado cansativa no seu tom monótono e monocórdico de quem
não afasta já uma rouquidão instalada no fundo da saliva. sob a doença há
ainda uma oferenda de aspectos luminosos a que te fechaste, a que não vais
querer mais chegar. existe um tupperware no real do teu frigorífico, maços
de tabaco vazios agora no lixo, mas no espaço do meu passado ainda a
ocuparem os seus lugares na tua sala de estar, um edredão por lavar a seco,
livros, um filme. lamento que nunca venhas ler-me, que não venhas saber-me,
que tenhas atirado tudo para um poço escuro de estatísticas e de irrelevâncias.
os meus olhos banais, cansados, destruídos, vermelhos do sono e do álcool
e do tabaco, da água do mar, só rebolando no vazio, a despropósito,
nus de sentido, secos, a mais valerem estar guardados numa caixa de chumbo
dentro de uma gaveta. lamento, pois, tão cada vez mais a sério, as décadas
onde caibo e onde me estraguei de amor errado, deslocado, lamento
o sol não ser um carro de fogo que me leve para um continente de outra
água mais certa, onde no encanto aceites as minhas mãos, ainda que na asfixia
e no frio às vezes violetas, às vezes violentas, e as trinques quando comeres
laranjas dos meus dedos.

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