3.6.15

guia prático para lancetar um quisto

existe um homem que todos os dias sobe a rua onde mora com um guarda-chuva
pendurado na parte de trás da gola da camisa. bate nos gatos com paus e pedras
e cospe no chão e veste sempre o mesmo par de calças castanhas. o homem é
feio e é mau, mas não é pior nem mais feio que todos os outros homens. existe
uma rapariga que todos os dias toma café de óculos escuros no café ao cimo da
rua onde o homem mora. lê revistas light e livros do Henry Miller e do Samuel
Beckett e do Carl Jung, fuma cigarros slim mas não light, como as revistas. o
homem sai de casa todos os dias com as mesmas calças e com a mesma violência
de paus, de pedras contra os gatos, a mesma sujidade de cuspir no chão quase
exactamente nos mesmos pontos precisos, aliterando a saliva na calçada, nos
passeios, na estrada e a rapariga só está no café já guardada todos os dias, também,
independentemente das fotografias que tira, nua, quando está sozinha em casa e que
depois mete em sites. o homem não sabe dessas fotografias e também não lhe interessa.
ama a rapariga e transfigura-se subitamente, interessa-se pelo Jung e pelo Miller embora
nunca tenha lido Miller, interessa-se pelos dedos finos de quem talvez toque piano
virando as páginas da revista light e pelos óculos escuros talvez grandes demais para o
rosto, e às vezes paga a meia de leite que a rapariga bebe todos os dias sem lhe dizer
nada. mas só é homem quando sobe ou desce a rua e fica sozinho consigo mesmo,
sem transfigurações e sem amor, só doente como todas as pessoas e irritado com
os gatos, com as pedras da calçada, sempre com o guarda-chuva ali ridículo e absurdo
pendurado na parte de trás da gola da camisa, a regressar para casa com vista a matar
a fome e provavelmente masturbar-se com a ideia da rapariga de óculos escuros no
café, alheio às fotografias dela nua, que seriam, a propósito do onanismo,
uma grande ajuda.

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