19.2.13

riscaram-me o carro às cinco da manhã

julgo que um húmus qualquer, uma flor esquecida
no tampo de uma mesa, junto de canecas e de
pratos de barro. os dedos e as unhas e os cigarros
o tabaco as mãos os olhos os dentes os nervos
na escuridão, num canto, sobre o tampo da mesa.
a meteorologia não se enganou hoje, os homens
da meteorologia sem conhecimento exacto
enganam-se muitas vezes, mas hoje não, porque
a precipitação, os aguaceiros, o vento, embora
aqui dentro, com o cheiro a vinho, os enchidos
pendurados na parede, o homem atrás do balcão,
silencioso, a limpar copos com um trapo sujo,
a mesa de madeira ferida, complicada, com um
jarro de vidro e uma flor lá dentro, julgo que o
húmus disto, no fundo. julgo que noutro local
pessoas que conheço em bicicletas sobre pontes,
nas estradas. mas aqui o escuro, o cheiro a vinho,
os enchidos pendurados nas paredes, sobras de
porcos, suínos, nenhuma fiscalização, ninguém
passa facturas, ninguém quer saber, o homem
está silencioso atrás do balcão e a sua única meta
é limpar copos com um trapo, contar as garrafas
de vinho, de aguardente, ligar a rádio numa estação
ao calhas onde de hora a hora se ouçam as notícias
e a meteorologia por entre o ruído branco da estática.
julgo que uma antena no corpo por onde entra a poesia
como um vidro partido, comer a poesia como um
vidro partido, com pão e enchidos assados em álcool
à minha frente, julgo que um húmus, uma flor tão
absurda neste canto, junto à parede, coberta de pó
e de insectos pequenos, coberta de linguagem de
todos os dias, num jarro de vidro, perto dos
copos e dos pratos de barro, mergulhada em tabaco
e dedos e olhos e vinho e nervos, tão triste,
porque a poesia vem dos mecanismos magnéticos
do fígado e dos pulmões e da faringe, nunca
dos nervos.

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