1.2.13

tarantella

gasto o que resta do corpo em acções
aparentemente inúteis; beber um copo
de vinho tinto, tomar um comprimido,
acender um cigarro, vestir umas meias,
lavar os dentes. em toda a memória
nenhuma destas coisas serve para nada
e no entanto perpetuo-as como se
servissem, sou um autómato moderno,
orgânico, com nervos em vez de fibra
óptica, com um coração em vez de um
êmbolo, com feridas em vez de fios
descarnados. tenho o amor dentro
da boca, uma besta, o amor, na
boca ou num jarro de flores vazio,
apenas água, um resto de mar, no fundo,
um resto de mar no fundo do corpo
e pouco resta do corpo, embora as
mesmas acções inúteis se mantenham.
gasto o resto do tempo, acendo um
cigarro, inspiro, expiro, os dedos
mudando de posição, rodando o
cilindro incandescente na ponta como
se fosse um sexo de papel, vejo o
fumo, gasto o cigarro, acabo o cigarro,
deito fora um cigarro. tomo um comprimido,
visto as meias, bebo um copo de vinho
tinto e sinto o frio e passo as mãos pelo
cabelo; danço o que posso dentro de
um corpo que seguramente não é meu,
cada fibra disto diz pertencer a um
outro, noutro local, mais capaz e certo.

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