14.12.13

carneiro

seguro nas mãos feridas do frio pós-apocalíptico
a carteira desbotada e gasta, ruça, do homem
quase morto na esquina. o dinheiro não vale nada
e em todo o lado há ruínas e incêndios, as sirenes
gritam avisos de bombas e no horizonte da
cidade as baterias anti-aéreas estão acordadas
contra as luzes. há gatos e cães que se alimentam
de braços, pernas, orelhas, olhos dos mortos empilhados
na praça, escombros indiferenciados dos outros
escombros feitos de cimento e pedra e ferro.
os candeeiros são como olhos intermitentes com
borboletas em vez de pestanas. tenho medo de falar
com estranhos enquanto fujo com a carteira roubada
a um homem meio morto que se sentava na própria
urina, encostado a um prédio desabitado. é isto que
vale alguma coisa: meia dúzia de papéis em bolsas
variadas, identificações, habilitações, fotografias de
pessoas que não sei quem são. uma vida inteira aqui
dentro, mais aqui dentro que dentro do casaco a
cheirar a mijo do homem a apagar-se como um
candeeiro, devagar, a cabeça pesando, caindo,
não é altura de falar de copos e de sorrisos e de
poesia, é altura de enterrar os mortos, de fugir
até casa com as carteiras e acender fogueiras
no chão com um fósforo, os documentos alheios
e algum combustível. aquecer as mãos, guardar
a carteira junto das outras, numa caixa de madeira
clara, os lados abaulados pela humidade e pelo vento.
lá em baixo os camiões do lixo vomitam a luz cor de
laranja contra as paredes e no horizonte as baterias
anti-aéreas decidem encetar a sua conversa de trovões
pós-modernos, com centenas de sóis fugindo pelo
céu acima, a correr para longe, tão longe desta loucura toda.

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