20.12.13

prosaica

são oito da noite -- vinte horas, oito PM -- e não consigo começar isto. não tenho como começar isto, embora tenha todo o tempo disponível para o fazer com qualidade, com estética: "pensa numa forma de iniciar este texto e fá-lo de maneira a que saiba a novo, não recorras sempre às mesmas imagens, deixa lá isso do amor, essa porra, essas lamechices, esses melodramas, esses circos. antes de mais, não te queixes tanto: tens uma vida maravilhosa defronte dos teus joelhos em peregrinação, há seis milhares de milhões (como é que porra é que se diz isso em português europeu padrão? biliões são o quê?) de pessoas no mundo, criaturas fascinantes prontas a ser descobertas, amadas, não há tempo para lamentar os desgostos, as fúrias, deixa-te dessas depressões insignificantes e vive a beleza da existência em harmonia com o teu irmão humano, o teu próximo, procura o deus das pequenas coisas, quando dormires, certifica-te de que tens os animais domésticos perto, um gato aos pés e outro na almofada, um cão por debaixo dos lençóis, contigo, aninhado naquilo a que vamos chamar 'o cavo das pernas'. não mintas, não finjas, emigra, move-te, mexe-te, labora pela tua felicidade, pois que a mereces!"

às oito da noite foi isto que consegui dizer, lembrando-me também do quanto me escapa a poesia, na verdade. o que domino não passam de imagens pequenas, desconexas, conceitos completamente despejados ao acaso, uma qualidade de desinteria emocional, mental, nunca construída num suporte de razão e de raciocínio. escapa-me a poesia pois a poesia tem de ser maiusculizada (A Poesia), há que se lhe dar e dedicar o verdadeiro valor, não ser preguiçoso e sobrecarregar o potencial leitor com o trabalho de descodificar sozinho uma coisa que nem para o autor faz sentido. isto para dizer que a poesia não é para homenzinhos heterossexuais sensíveis e lamechas, a época desses Artistas já passou, esse modo de cinismo orgulhoso com alguma sobranceria à mistura, os coitadinhos, os que bradam pelas mamãs, pelas vovós. não, este tempo, estes anos são dos verdadeiramente inteligentes, desde que se movam, dos que vão à bola, dos que percebem a matemática, a ciência, a engenharia, a medicina; os que decoraram os conceitos e os guardam numa estante metafórica junto do fígado, essas coisas são para estar nas vísceras, não nos pulmões ou no coração. a poesia é, afinal, dos que comem, dos que sofrem com estoicismo e nunca impingem ao seu semelhante o fardo dos seus problemas individuais -- que coisa tão minúscula, no oceano imenso da humanidade! que valor terá isso? nenhum.

deveria, pois, calar-me. ou exercitar a escrita de outra forma, isto é, trabalhá-la, usar de forma objectiva os dons e os carismas que a biologia e a evolução me proporcionam, não atirar o vocábulo "injunção" ou "transumância" para dentro do texto sem saber, ao certo e com legitimidade, quais os seus significados e significantes. ter ficado com pelo menos umas noções de teoria literária, pelo menos umas coisitas de linguística, uns conceitos de filosofia, sem ser só "não gostar de fenomenologia" ou "ser um discípulo da L=A=N=G=U=A=G=E school". deveria, pois, emigrar, deixar de procurar o amor, crescer -- é isso, crescer, amadurecer, decorar conceitos, amá-los, debitá-los, decantá-los, rezar-lhes como a um deus antropomórfico morrendo de reumático osteoporose hipertricose auricular. ir à bola com outros homens, ir ao estádio, ir ao café beber cerveja, assentar com uma mulherzinha normal numa vida normal com um emprego que me satisfaça economicamente e que me permita ter uma televisão em casa uma aparelhagem uma mesa e um fogão na cozinha pratos rasos e pratos de sopa e talheres e papel higiénico na casa de banho e água fria água quente gás luz aquecimento central um ou dois armários um cesto para a roupa uma máquina de lavar louça uma máquina de lavar roupa uma máquina de secar roupa cadeiras um secador de cabelo corta-unhas um cesto para revistas e revistas actualizadas um aquecedor a óleo um esquentador ou talvez uma caldeira eléctrica copos de vidro um açucareiro um saleiro uma garrafa de azeite uma banheira ou pelo menos um polibã e cortinas de banho toalhas de rosto toalhas de banho toalhas de mesa chinelos cintos uma fruteira meias cuecas pilhas AA preferencialmente recarregáveis uma mesa de cabeceira uma cama lâmpadas uma ou duas estantes um guarda-fatos tapetes napperons cortinas cortinados e tempo -- foda-se, ter tempo para aproveitar, para me deliciar com a mediocridade a que me releguei e que me oferece a poesia verdadeira, sincera, a poesia merecida de quem trabalha, de quem labora, de quem pensa com a lógica, de quem não desperdiça as palavras à toa. a poesia de quem pode, de quem consegue, não a poesiazinha de quem quer. perdoem-me o pretensiosimo das minúsuculas, perdoem-me o pretensiosimo da falta intencional de vírgulas, da intenção fácil de tentar construir a poesia (A Poesia) através de uma entediante lista de objectos quotidianos.

isto devia ter sido feito por um homem a sério, um homem rijo, um homem de sorriso aberto, sem merdas, sem lamechices, um homem capaz, que entenda que a vida não são só mulheres umas após as outras até que alguma, subitamente, "a certa" ("A Certa"), um homem pelo menos com o mínimo de subsistência económica, que vá à bola, que perceba da bola, que perceba de logística e sobretudo

que não se dê tanta importância a si mesmo no oceano da humanidade.

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