2.12.13

gama

o médico pergunta-me onde dói e não lhe sei responder. dói-
-me nas unhas, dói-me imenso nas unhas só que as unhas
são um tecido morto, não é suposto que doam, pois não?
é psicossomático. ou seja, é uma coisa da alma. convém
esclarecer que psiké é alma e não cabeça. a cabeça
não existe, apenas a alma, a fazer ruído com os papéis,
a dizer-me que o que dói são as unhas. sabia que
quando morrermos os cabelos e as unhas ainda crescerão
um pouco? é bonito, não é?, que as únicas coisas
mortas de nós ainda vivam depois de morrermos? nos
sonhos há um cavalo com a crina feita de gelo e
musgo e com os olhos pretos como se fossem feitos
de pedra vulcânica, baços, relincha como se o seu
organismo fosse metálico e esmaga-me o crânio com os
cascos. não sei onde me dói, nem sequer sei se há
alguma coisa errada comigo. urino e evacuo bem, com
regularidade, ando imenso tempo, sem me cansar, de vez
em quando constipo-me. gostava que os meus pulmões
subitamente se amarrotassem, sabe?, como os dedos da
alma fazem aos papéis. o tabaco está-me a fazer definhar
os pulmões, espero ter um cancro. não quero que me
tratem, a medicina moderna, permita-me que lho diga,
é uma imbecilidade. uma vez fiz uma lavagem ao
estômago e custou imenso, estive num corredor de
hospital com um tubo no nariz, sem me poder mover,
sem poder respirar, e sempre que abria os olhos
havia pessoas a morrer em todo o lado, com coisas
espetadas nas macas, que pareciam antenas. fale a minha
linguagem, se puder ser. fale com a língua.

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