4.3.14

na compra de 5 caixas ou mais

a minha existência é atestada pelas cartas do banco. essas vão ainda chegando
no correio, atrasadas, com prazos de dez dias que já só são três, mas vão
sabendo o caminho da minha casa, do meu corpo, trazem-me uma espécie
de literatura com números, percentagens, lucros, débitos, ameaças educadas
e propostas de penhora sobre o nada que tenho em meu nome. eu existo
pois o banco ainda vai sabendo que é aqui que estou. com as chaves da
porta completamente desnecessárias na presilha das calças, como aos onze
anos, a querer dormir sentado na cama como se o tempo me cobrisse e
me desse a calma e a intemporalidade de uma figura de pedra, inexistente
mas concreta, dentro do útero de tijolo e tinta da minha casa. não tenho
absolutamente nada a que o meu nome se associe, nada que o banco
me leve, o banco não quer saber cá de poesias, a poesia não me paga
as contas e eu também não, portanto as cartas do banco vêm com as
ameaças sempre muito civilizadas a seguir aos números e aos factos --
são importantes, os factos
--, ameaças de me levarem as coisas que não tenho, as coisas que
deveria ter, que todos têm. o banco não se rala com a poesia e nem
tem por que o fazer, a poesia não paga contas e eu também não,
a poesia não me paga arroz nem queijo nem a luz nem o gás nem o
tabaco (falta-me tanto o tabaco); vou bebendo água da torneira e sabe
a musgo e a pedras, vem do poço sob a casa, sabe a caracóis e a lesmas,
a centopeias e a bichos-de-conta que na escuridão debaixo da casa
se alimentam e crescem e morrem dentro da água. a poesia não me
paga garrafas de água, mas antes de puxar o autoclismo a água
da torneira é tão amarela quanto a das garrafas.

1 comment:

neverland said...

Fuck, this poem hurts.
Evidentemente bom, muito bom.