4.3.14

uma náusea de vidro

quando me voltar para trás e olhar para aquilo que, enfim,
fica para trás (coisas horríveis, angústia, arrependimento,
culpa), tornar-me-ei numa estátua de sal como a esposa
de Lot, o meu esposo e as minhas filhas a seguir em frente
numa tapeçaria e num baixo-relevo, eu com uma touca,
parada, eterna, para sempre atenta à destruição de
sodoma de gomorra
tão triste, tão incomodada com o facto de desaparecerem
assim da história do mundo, e ter de as contemplar
onde estiveram fundadas, ainda que já nada, delas,
ali reste. saber que é por minha culpa que arderam
no enxofre da fúria divina, não poder sequer
chorá-las, ser só um pilar de sal, estático, perene,
o meu esposo e as minhas filhas tão longe, não
vale a pena chorar pessoas assim, fazemos o luto
mais tarde, ela agora é uma estátua de sal no deserto,
quem a mandou voltar-se para trás e olhar para aquilo
que, enfim, fica para trás? é coisa de gente fraca, não
se pode perder tempo com culpas, é um desperdício.
em gomorra os olhos nas sombras chorando enquanto
o fogo lambendo os corpos desfigurados, sou uma
estátua de sal e não choro, não posso, mas seria
bom poder fazê-lo ocasionalmente.

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